Há seis anos, mais ou menos por esta altura, o país assistia à queda político-administrativa do XX Governo. Tinha legitimidade eleitoral - a coligação que o suportava ganhara a eleição legislativa e o primeiro-ministro foi nomeado nos termos constitucionais -, mas a esquerda parlamentar, liderada pelo segundo partido mais votado, o PS, entendeu que não. Um a um, pé ante pé, esperando pela sua vez, Catarina, Jerónimo, alguém da ficção PEV e, talvez, o sr. Silva do PAN foram encontrar-se numa salinha do Parlamento com o dr. Costa e o sr. César, onde assinaram umas papeletas. Quando a coisa ficou pronta, regressaram ao hemiciclo e derrubaram Passos Coelho. Se não fosse Cavaco, nem sequer as papeletas tinham assinado. Mas o presidente exigiu compromissos por escrito. Duraram uma legislatura.
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Na actual, o PS já entrou em primeiro lugar e formou Governo, mantendo a quadratura de círculo com a sua esquerda parlamentar, e duas ou três noviças "não inscritas". Em seis anos, Costa, que é como quem diz, o PS, fez sempre questão de insistir em duas fronteiras. A primeira, a dependência exclusiva do Governo diante da Assembleia, apesar de mais de cinco anos de mesuras do doutor Marcelo, que nem compromissos escritos exigiu. A segunda, a dispensa de qualquer "mão" do PSD, mesmo quando o dr. Rio esteve sempre precisamente de mão estendida. Entretanto, as "farturas", festas e festanças de 2015-2019 esgotaram-se. O Governo, já sem Centeno e as suas magníficas "cativações", não pôde mais persistir no registo da duplicidade por causa, sobretudo, do PRR (a Espanha socialista-populista, por exemplo, ainda não tem o seu PRR aprovado). Uma coisa por aqui, para consumo da esquerda que lhe deixava passar os orçamentos. Outra coisa em Bruxelas, onde o Orçamento vai a visto nos termos do "tratado orçamental". Todos venderam as respectivas almas ao diabo, durante seis anos, mas só o PS lucrou com isso. Mesmo assim, Costa dispôs-se a rasurar as leis do trabalho e a sovietizar o SNS para passarem os enjoos a Catarina e Jerónimo. Todavia, mesmo que o orçamento passe na generalidade, esta semana, o regime das papeletas de 2015 fica ferido de morte. Não é por acaso que Costa acha mais decente o sistema de duodécimos até melhores dias. Em "Hamlet", Marcellus afirma famosamente que "está algo de podre no reino da Dinamarca". Em Shakespeare pelo menos estava. Aqui, como responde Horatio, "a providência decidirá".
Jurista
O autor escreve segundo a antiga ortografia.
As citações de "Hamlet" pertencem à peça homónima, de William Shakespeare, traduzida por António M. Feijó, para as Edições Cotovia, 2001