Resolvi expropriar esta frase, registada pelo Benfica há umas épocas, porque ao abrigo do estado de emergência é possível suspender direitos de propriedade e porque, de qualquer forma, o clube não ia precisar dela para nada, numa fase em que nem futebol há.
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Esta comunhão de pensamento, "tudo a pensar no mesmo", foi utilizada durante muitos anos na iminência da conquista de um título, embora fosse uma frase enganadora (como quase tudo é, de resto, no mundo da bola). Não estávamos todos a pensar no mesmo. Os sportinguistas, portistas, boavisteiros, estorilistas, pelo contrário, estavam a pensar noutra coisa qualquer, precisamente para não lhes vir à lembrança mais uma época desgraçada do respetivo clube. Nem sequer quando o Éder protagonizou aquele pequeno milagre sob a forma de golo estivemos todos a pensar no mesmo. Sim, houve loucura generalizada, aeroporto a abarrotar, carros abandonados no meio da estrada para acenar aos campeões europeus, mas a vida seguiu o seu rumo. Houve funerais iguais a todos os outros dias (com abraços, sem distanciamento social), houve crianças a nascer (algumas talvez até chamadas Ederzito), com o pai a assistir ao parto, houve aniversários, com os "bolos estádio de futebol" a venderem que nem pãezinhos quentes, e, sim, houve pãezinhos quentes e filas de gente sem máscara e luvas à espera para os comprar. Não estávamos todos a pensar no mesmo. Havia até pessoas que não ligavam ao futebol, para quem aquela foi apenas mais uma segunda-feira normal. Apesar de Éder ter decretado, alto e bom som, "é feriado hoje, c******!", não era. 11 de julho continua a ser um dia em que todos temos de trabalhar. E o que mais queremos, neste momento, é imaginar um 11 de julho em que saímos de casa cedo e chegamos ao emprego stressados, porque apanhámos imenso trânsito na ponte. É que agora, de repente, em março de 2020, parece feriado todos os dias, c******!", e já não há paciência para isto. Mas é a única altura das nossas vidas (pelo menos nos trinta e quatro anos que presenciei) em que estamos mesmo todos a pensar no mesmo. Que remédio. As mesmas questões a pairar, seja num T0 em Massarelos ou numa grande mansão em Vilamoura. "Será que a farmácia já tem máscaras? Será que devo usar máscara ou é só para quem está doente? Estarei doente? Ou esta tosse seca é da minha rinite alérgica? E este calor que sinto agora? Será febre, ou é só porque voltei a enervar-me com o meu filho, que deixou Legos espalhados pelo corredor? Quando será que volta a escola? E o trabalho? E, sobretudo, a senhora que engoma e limpa a casa? Será que a Judite de Sousa mantém a senhora lá de casa na quarentena, por ser, precisamente, lá de casa? (OK, esta questão se calhar só me ocorre a mim...) Será que aquele áudio do Whatsapp tem algum fundo de verdade? Será que devo continuar a ler artigos sobre o novo coronavírus, quando nunca me interessei pelos antigos coronavírus? Quantos casos novos foram detetados hoje? Como estamos, comparados com ontem? E comparados com Itália? OK, mas com Macau... E estarão a fazer testes que cheguem? E a encomenda do Continente que nunca mais chega? Será que devia ter mandado vir mais coisas ou já seria considerado açambarcar? Será que a minha tia Lurdes continua a insistir em ir à mercearia? Mesmo depois de todos nos termos oferecido para ir por ela? Será que nos acha incompetentes ao ponto de não conseguirmos trazer os iogurtes de pedaços de que ela gosta? Será que a esplanada da rua de baixo continua cheia? Será que as pessoas não leem os jornais? Não ouvem rádio? Não veem o Rodrigo Guedes de Carvalho? Não têm medo?". O medo, às vezes, pode ser útil. Esta é uma dessas alturas. Se não o deixarmos agigantar-se até ser pânico. Mas uma ligeira miúfa pode ser profilática. E é essa falta de medo que torna os velhotes inconscientes. Antigamente, quando pensávamos em gente que se acha imortal e corre os maiores riscos, visualizávamos um jovem de 20 anos. Agora, surge imediatamente a imagem de uma septuagenária, daquelas curvadas mas rijas, com os seus sacos do Pingo Doce. Esta atitude irresponsável dos idosos não é novidade, simplesmente agora acontece em larga escala. Lembro-me disto, desde sempre: andar na rua com a minha avó e ela lançar-se para as passagens de peões sem sequer olhar para os lados. Não abrandava a marcha, seguia sempre ao mesmo ritmo, e dizia-me, com uma confiança irracional: "eu estico a mão para eles pararem"... Vou tentar que entretanto não seja atropelada pelo coronavírus, que era ainda mais inglório, para quem conseguiu passar 96 anos a esquivar-se de automóveis a alta velocidade. Estamos todos a pensar no mesmo: quando é que isto acaba? Há uma parte que depende de nós. Aguentemos. Não estamos todos no mesmo barco mas estamos todos no mesmo sofá
Humorista