Estado, palito e tampinhas
Corpo do artigo
Ao longo deste dia de domingo, a atenção dos portugueses navega entre o ato eleitoral para o Parlamento Europeu e a final da Liga dos Campeões ontem disputada. Real ou Atlético, Ronaldo ou Tiago, Aliança Portugal ou Partido Socialista, Rangel ou Assis, enfim todo um mundo dicotómico que se começou a deslindar ontem ao fim do dia e cujo remate se consumará hoje pela mesma hora. Com este alinhamento, escrever uma crónica de véspera, no desconhecimento do desfecho das duas contendas, empurra-me fatalmente para uma qualquer temática periférica.
É assim que chego às forças de segurança nacionais, que nestes dias tiveram preocupações para além da bola e das eleições. Esta foi também semana de palito e tampinhas, porque um país não vive só de eventos épicos. A verdade é que os episódios que escolhi para esta crónica dizem muito do país de hoje, do Portugal da crise.
Começando pelas tampinhas. São conhecidas as histórias de agentes das forças policiais que, ao invés de andarem pela rua a cuidar da nossa segurança, se entretêm nas esquadras a tratar da papelada. Má gestão de recursos humanos, pois essas são tarefas que cairiam melhor aos civis. Agora, recrutar umas dezenas de agentes da PSP para separar 10 milhões de tampas com as quais se pretende fazer uma bandeira de Portugal para, no feriado de 10 de junho, bater o recorde do Guinness é projetar a gestão de pessoal especializado para patamares inimagináveis.
Tratando-se de agentes de segurança, dos que usam farda, a questão é ainda mais sensível. Porque à farda está associado um estatuto, um simbolismo que deve ser mantido e respeitado. Este tipo de brincadeiras expressa bem o caminho de descredibilização a que vem sendo votado o serviço público e os seus servidores. Já se faz tarde para iniciar a inversão desta corrida para o abismo, porque um Estado que não respeita não terá qualquer capacidade de se fazer respeitar.
Agora o palito. "Palito" ou "Franzino", alcunha de Manuel Baltazar, o sexagenário de Valongo dos Azeites, no distrito de Viseu, que há 35 dias assassinou a ex-sogra e a tia e feriu a ex-mulher e a sua própria filha. Pois este meliante, na simplicidade da sua condição de agricultor, iludiu as forças de segurança logo no dia primeiro, quando se escapou do local do crime sem deixar rasto.
Iniciou-se então a perseguição, com meios e mediatização a que estamos pouco habituados. Era ver os agentes da PJ a fazer perguntas, a GNR apeada a "cheirar" os recantos da região e os garbosos binómios agente-cavalo a vigiar do alto da sua imponência. Seria uma questão de horas ou, no máximo, um par de dias.
Trinta e quatro dias depois, sem nunca ter abandonado a área, o homem aparece na sua casa, para descansar, lavar-se e comer, e é finalmente capturado. Dificilmente se explicaria outra razão para este "regresso" que não fosse a intenção de se entregar às autoridades. Terá mesmo, na hora da detenção, pedido para tomar o seu banho de forma a completar o seu plano.
E com as objetivas de novo focadas, eis que o dispositivo reganha ânimo e rejubila com a vitória. O homem fora, afinal, capturado na sequência da estratégia montada. Teve os seus custos, é certo, mas no final o Estado impôs a sua autoridade. Mesmo que tenha sido o homem que, esgotado e sujo, decidira dar a história por terminada. Facto extraordinário, quando chegou ao tribunal foi aclamado pelos populares, aliás à imagem do sucesso facebookiano de uma conta aberta em seu nome nestes últimos dias.
Há sempre aqueles que acham que o português é machista e que se o homem disparou sobre as mulheres da sua vida foi porque tinha as suas razões. Versão tola que, de tão ridícula, não me merece sequer qualquer comentário. A minha interpretação é diversa. Aquilo que as pessoas aplaudiam era a vitória do esfarrapado sobre o Estado autoritário. Quando se pensa que tudo aconteceu numa localidade do interior, justamente onde o Estado maltrata as populações, subtrai-lhe os serviços, empurra os jovens para a emigração, bem se percebe que as pessoas comecem a olhar para símbolos da nação com desdém. E todo aquele aparato, homens, fardas e cavalos incluídos, se transformou no inimigo do cidadão comum e indefeso. Mesmo que, para o efeito, tenham cooptado um herói de improviso, o "Palito".