<p>Escrevo quando se encerra a primeira sessão de póquer em S. Bento. Por outras palavras, no termo do dia um de discussão do Programa do Governo. Todos usaram o bluff, sugerindo que as cartas na manga eram superiores às mostradas. Foi, aliás, uma mistura disso, e do famoso "jogo da galinha". Neste, dois oponentes investem simultaneamente, cada um esperando que o outro pare primeiro.</p>
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O Executivo apelou sempre à "responsabilidade" das oposições, embora não as tenha desafiado a apresentar uma moção de rejeição. As oposições insistiram na maldade, insuficiência ou excesso do plano governamental, mas não desafiaram José Sócrates a apresentar um voto de confiança.
De outra forma, os líderes parlamentares que salientaram ser este um programa de "continuidade", e que lembraram ter essa "continuidade" sido chumbada nas urnas (com a perda do poder absoluto), não deram o passo dramático de anunciar a recusa de tal estratégica. Não deram, até ao fim do primeiro dia.
Mas mesmo que atravessem esse Rubicão, e decidam accionar o mecanismo do artigo 192, n.º4, da Constituição, a verdade é que o Governo possui, desde anteontem, um seguro de vida.
Essa apólice foi fornecida pelo PSD. Pelo PSD, que garantiu não ir rejeitar o programa. Ou que, pelo menos, garantiu não ir tomar a "iniciativa" de o fazer.
Foi o mesmo PSD que, pela voz de Manuela Ferreira Leite, declarou ser o mapa de princípios socráticos um programa mau, mas felizmente inexequível. Ou um programa que, independentemente de ser bom ou mau, ficará outra vez por cumprir.
Foi esse mesmo PSD que, sempre na palavra de Manuela Ferreira (a qual, outra vez moralizada e aguerrida, mostrou ser a melhor líder parlamentar do partido), lembrou estar o Programa do Governo cheio de soluções que, a serem concretizadas, acelerariam a dívida pública, a dependência do exterior, o empobrecimento e a ruína.
É este PSD que, por outro lado, dá a sensação de não discordar, em pontos essenciais, do mesmo programa. É que se essa discordância fosse grave e essencial, não haveria outra solução, a não ser a rejeição.
Isto parece um paradoxo. Mas não é.
O PSD, por um lado, não estando mandatado pelas outras oposições, não aspirando a liderar os quatro "nãos", e não tendo a sua casa arrumada, não quer aparecer como autor de uma moção de rejeição que, apesar disso, poderia levar o seu curso. Na verdade, seria difícil ao PP, BE e até PCP, não votar uma moção de rejeição do PSD, se esta fosse fundamentada em discordâncias partilhadas pelos quatro partidos, como seja a necessidade de reforma profunda da avaliação dos professores, ou de formas avançadas de combate à corrupção.
Daí que o PSD não tenha querido ficar com a criança nas mãos.
E daí que José Sócrates tivesse aparecido relativamente tranquilo, traindo até, de quando em vez, um estadismo eufórico ("a verdade é que os senhores estão aí, e eu estou aqui"), e não desleixando a oportunidade de se aproveitar do nervosismo e alguma desorganização de velhos adversários, como Pacheco Pereira e Louçã.
Claro que Sócrates abriu muitos flancos, como sempre mal aproveitados. Ao responder a uma objecção certeira de Portas, afirmou que só perdeu a maioria absoluta por causa da crise internacional. Nada mais no horizonte do nosso descontentamento.
E, salientando a legitimidade de apresentar este programa, tal qual existia durante a campanha, reconheceu, ainda assim, que tentou coligações. Para que seriam estas precisas, se o programa é indiscutível?
Ou não é?
Se calhar, não é.
Apesar de todo o bluff.