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A Sra. Ministra do Trabalho tinha muito para dizer sobre abusos à lei que reduz a carga horária das lactantes. É que, de facto, não faltam abusos num país em que todos os anos se despedem mais mulheres grávidas e lactantes (dados do CITE), e em que muitas das mulheres que têm direito à redução de horário evitam exercê-lo por medo de represálias, ou são fortemente pressionadas a abdicar dele pelo ambiente de coação que é criado por chefias e colegas. Tenho a certeza que toda a gente conhece um caso destes.
A Sra. Ministra tinha muito para dizer sobre amamentação e como esta é aconselhada pela OMS, no mínimo até aos dois anos, mas em Portugal (dados da UNICEF) só cerca de 30% consegue mantê-la em exclusivo até aos seis meses (o mínimo desejável segundo todas as evidências científicas), em grande medida porque a licença de parentalidade acaba antes disso e há que voltar ao trabalho.
A Sra. Ministra tinha muito para dizer sobre a necessidade de garantir uma licença de parentalidade de 6 meses, aprovada no Parlamento depois de muita luta de um grupo de cidadãos na última legislatura, mas nunca promulgada. É que, de facto, este novo Governo, pelas muitas medidas anunciadas nas últimas semanas, já mostrou que os direitos das mulheres/famílias são um alvo a abater e que, portanto, estão longe de retomar essa proposta (até porque a AD votou contra).
A Sra. Ministra tinha muito para dizer sobre a sensação de injustiça que muitas vezes se cria entre pares (trabalhadores), pelo facto das lactantes terem direito a redução de horário, quando outros colegas com filhos da mesma idade não têm. Sendo que, de facto, essa redução deveria ser universal para todos os pais de bebés, porque só num país sem qualquer preocupação com as crianças, se normaliza a prática demasiado comum de deixar bebés com menos de 3 anos na creche das 8h às 18:30h, todos os dias.
A Sra. Ministra tinha muito para dizer sobre direitos, mas preferiu falar sobre abusos, como é apanágio da direita populista (sobre o RSI, por exemplo). Preferiu acenar com o papão das mães que ousam (vejam todos com indignação) amamentar as suas crianças!! Essas mães abusadoras (cuja existência é baseada em dados inexistentes, ao estilo conheço-um-caso-de-uma-conhecida-da-minha-prima) que, amamentando os seus filhos até à escola primária (!!), mamam nas tetas da lei e aparecem, assim, como bodes expiatórios para acabar com um direito (que deveria ser alargado) e que passa a estar no foco da desconfiança, do espírito pidesco e invejoso do controlo da vida alheia (típico dos tempos da velha senhora).
A Sra. Ministra tem muita compreensão para com as empresas, mas nenhuma para compreender que as famílias, que eventualmente cometem esse tipo de infração, o fazem certamente como estratégia de sobrevivência, num país inimigo da parentalidade (e que ironicamente precisa tanto de crianças), em que conciliar a família com a vida laboral é impossível, e em que se normalizou que trabalhar além da hora é o esperado de todos os "bons" trabalhadores.
Acontece que a Senhora Ministra do Trabalho-em-prol-do-Patronato tem nesta licença de amamentação uma barreira a destruir, não apenas pelas duas horas a menos de trabalho diário, mas porque a atual lei protege as lactantes de trabalho noturno e ao fim de semana, de acumular horas extraordinárias e da adaptabilidade de horários e, ao arrepio de todos os países desenvolvidos que criam incentivos à natalidade com leis trabalhistas amigas da família, este Governo aposta na total precarização e flexibilização do trabalho, em mais um retrocesso, num contexto em que a vida já é tão cara, a habitação inalcançável, a independência adiada e ter filhos é uma inconsciência.