É um clássico: lemos o poema "Tabacaria", de Fernando Pessoa, e ele fica-nos colado à pele - uma extensa tatuagem na pele da alma. Durante a adolescência (ainda há quem o leia adolescente), nele antevemos o que está por vir e ficamos naquela ânsia, procurando em cada esquina, pela vida fora, um Esteves sem metafísica.
A poeta e cantora Teresa Esteves da Fonseca pegou neste mote e fez o que quis em "de.bu.te" (2025), o seu álbum de estreia. O concerto inaugural, este sábado, na Casa Capitão, em Lisboa, abarrotava de gente que queria assistir a uma artista inteira.
E lá veio ela, meio tímida, a timidez exuberante dos grandes artistas, vestida de farda branca, branquíssima a dar-lhe um recorte de exército - como defendendo-se contra algo que ninguém sabe o que é -, pronta a dar espectáculo.
Deu-nos um espectáculo inteiro porque ela estava inteira no palco. Teresa destoa por completo de uma certa tendência dos últimos tempos: a sua música não é a tradução de pequenas sensibilidades amorosas cantadas em vozes direitinhas e perfeitamente desinteressantes. É outra coisa, uma voz autoral até ao osso que apresenta a fragilidade como força. O single "sóbria" diz isto muito bem: "ao passar as redes do quintal / tropeço a cada passo e vejo mal / juro, nem pensei neste final / mas arde em todo o lado, isto é sal". E conclui que vai ficar "neste estado de licor", e "sóbria quando der".
Teresa escreve, compõe e canta, e consegue-o com uma exuberância discreta que é uma espécie de provocação. Parece dizer que não consegue, não consegue - mas vejam como não consegue maravilhosamente. A ajudá-la tem um coro de várias vozes femininas e uma profusão de músicos na bateria, no violoncelo, no saxofone e tanto mais. Eu, que não percebo de música, não faço ideia como Teresa consegue conjugar tantas coisas díspares, mas de facto resulta em óptima música. Gosto especialmente da canção "dar-me de volta", que começa com uma cadência de escadaria.
Em palco, com a sua farda, escondeu-se ocasionalmente atrás de um megafone: mas foi mais uma vez um mostra e esconde, porque, cantando para nós através do megafone, que produzia ao longe uma voz vaga, impôs-se ainda mais.
Não costumo escrever sobre música e suponho que existam códigos que é suposto respeitar. Uma certa lábia. Mas sei que a música, sendo muitas coisas, se não nos atinge, até pode ser boa, mas falha o alvo.
Durante o concerto, fui espreitando o público: era uma cambada de atingidos. E todos saíram da Casa Capitão, como espero quem a oiça em qualquer sítio, perguntando se realmente conheceriam aquela artista. E logo respondendo: "Ah, conheço-a, é a Esteves sem Metafísica".
O autor escreve segundo a antiga ortografia.

