A ideia de que temos um tribunal que não deixa o país ser judiciosamente governado convive com o pior dos sentimentos que se podem desenvolver a partir das leis, das suas interpretações e das circunstâncias em que surgem e são aplicadas: a desconfiança. É também uma ideia assente num pressuposto lastimável: a de que os factos se podem impor por si mesmos e lograr opções indeclináveis por razões de Estado, que não podem ser aceites politicamente sem colocar em xeque o regime constitucional.
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Essa desconfiança tornou-se especialmente partilhável desde que alguns políticos abusaram de uma linguagem radicalizada para classificar como força de bloqueio o Tribunal Constitucional, considerando-o como espécie de fação política em razão das declarações de inconstitucionalidade que os seus juízes formularam para um conjunto de medidas de austeridade incluídas no Orçamento do Estado de 2014.
Sobre essas declarações de inconstitucionalidade, vale a pena referir que os princípios em questão são os da igualdade, da equidade, da proporcionalidade e da confiança, os quais não merecem ser objeto de contestação política em regime democrático estável. Ou seja: princípios de natureza tão basilar cujo questionamento tende a fazer aceitar que a democracia foi colocada entre parêntesis por um Estado, do qual só poderá sair através de uma revisão da Constituição da República no sentido de sacrificar esses princípios basilares a normas como a da regra de ouro do défice limitado orçamental resultante do pacto europeu. Regra essa que alguns gostariam de ver acomodada na carta magna, gozando de um estatuto sancionatório equivalente ao dos supremos resultados eleitorais.
Como é óbvio, não estamos propriamente em guerra e não se vislumbra uma maioria qualificada de deputados para rever a Constituição.
Ainda assim, talvez fruto da crise interna em que vive o PS, o primeiro-ministro não resistiu à tentação de anunciar publicamente o seu próprio movimento no complexo xadrez das relações entre órgãos de soberania e o Tribunal Constitucional. E com desenvolvimentos públicos que envolveram o presidente da República, o que não deixa de ser um lance de alto risco nas atuais circunstâncias de desconfianças mútuas e mesmo cruzadas.
Em boa verdade, Passos Coelho não pode pedir a Cavaco Silva que desencadeie a fiscalização preventiva de modo a que ele saiba com que linhas poderá coser a ação governativa. Pela simples mas suprema razão de que esse procedimento só pode ser desencadeado por fundada dúvida jurídico-constitucional do próprio presidente da República sobre as leis que lhe são propostas. E assim sendo, manda a lei que não seja preciso pedir-lhe absolutamente nada.