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"Esta história começou em Novembro de 2002 quando deveria ter acabado há mais de 20 anos. E porque passou tanto tempo, muito ficou para julgar nos tribunais, sem, contudo, ter fugido ao crivo da revolta íntima de todos os que não se conformam com crimes sem castigo.
O que deveria ser uma unanimidade nacional transformou-se na maior fonte de controvérsia e de suspeitas disparadas em todos os sentidos. Logo na denúncia se zangaram, entre si, assumidos denunciantes, culpando-se mutuamente e prometendo-se pleitos de honra em tribunal.
Jornais escolheram trincheiras e tomaram partido, jogando informação como obuses de um lado para o outro. O mundo judicial mostrou-se incapaz de guardar segredo e deixou-se embalar em protagonismos e visibilidades.
Prisões surpreendentes e demasiado vistosas geraram ondas de solidariedade e protesto que acabaram por lançar dúvidas quanto aos processos e intenções. Desejava-se uma cirurgia certeira que extirpasse da sociedade os carbúnculos fétidos do doentio abuso de crianças. Mas a lanceta abriu muitas outras chagas, aqui as (des)lealdades mediáticas, ali as perplexidades no mundo da lei: ficou a saber-se que o segredo de justiça só vale para quem o pratica e respeita - e há muitos que não o respeitam nem praticam; tornou-se claro que a prisão preventiva é uma medida de descanso judicial, alargável até ao absurdo, sem qualquer compaixão por quem é privado da liberdade sem saber sequer de que é consistentemente acusado; veio a público a latitude do uso da escuta telefónica; conheceram-se as mais díspares maneiras de interpretar as leis e as mais preocupantes manifestações de autodefesa corporativa em áreas de um órgão de soberania como os tribunais.
(…) Mas o pior, sob este céu de chumbo, é que já nada convencerá todos à uma: se forem absolvidos, uns dirão que bem, outros que mal; se forem condenados, a mesma coisa. A justiça, por culpas próprias e alheias, sofreu o mais forte rombo na sua credibilidade e transparência desde que Portugal recuperou a democracia.»
Escrevi este texto em Agosto de 2003, para a introdução de um livro que fiz a meias com Nuno Ivo (mentira: ele fez a maior parte): «A Nuvem de Chumbo - O Processo Casa Pia na Imprensa» (Dom Quixote). Reproduzo-o aqui porque as sobras já foram destruídas.
Sete anos depois, tenho pena de não ter mais nada para dizer. A não ser isto: não acreditem no que vos têm feito crer - o jornalismo de investigação só agora pode começar. Se começar. A policial e a judicial, essas - viu-se.
oscarmasc@netcabo.pt