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Há dois valiosos estudos técnicos de 2014, bem fundamentados, a meu ver conjugáveis, ambos apontando soluções para o magno problema das dívidas públicas de toda a Zona Euro, incluindo Portugal.
Um é o "Relatório de Peritos sobre Fundo de Redenção da Dívida e Euro-bilhetes", subscrito por 10 peritos. Foi uma encomenda da Comissão Europeia, mas o relatório não a vincula, digamos que é para-oficial. O outro, já aqui falámos dele, é o artigo "Padre", de dois autores de um centro internacional de estudos. Vou ater-me ao primeiro.
Emissão conjunta, esforço interno...
O problema-chave da Zona Euro está nas dívidas soberanas. A redução do seu peso nos países do euro é importante para repor o normal funcionamento da união monetária. Ora, dizem os 10, essa normalidade é do interesse geral de todos os países membros. Todos devem ser chamados à solução.
Reduzir, como? Os 10 respondem com a ideia, que não é nova, da emissão conjunta de dívida europeia, dentro de certos parâmetros e condições. Mas, dizem, essa ideia é condição necessária, não é suficiente. A par disso, o esforço interno dos países endividados, como Portugal, tem de prosseguir em dois campos. No campo das finanças públicas, o esforço é de disciplina orçamental e excedentes primários, é de reforma do Estado, é de políticas de austeridade, tudo está ao alcance dos políticos. No campo da economia, o esforço é de crescimento efectivo e potencial, é de reformas estruturais, nem tudo está ao alcance dos políticos.
Duas vias de redenção da dívida...
Os 10 foram mandatados para estudar duas hipóteses de substituição parcial de dívidas nacionais por emissão conjunta de dívida. Primeiro, o pacto e o fundo de redenção de dívida (DRF/P). Segundo, os euro-bilhetes (EB).
O DRF/P tenderia a ser um mecanismo de vida longa, 10 a 25 anos, dependendo do esquema adoptado, e implicaria alguma transferência de soberania na sua vigência. Faria descer significativamente os rácios "dívida pública/PIB" de cada país. Restabeleceria a reputação das dívidas soberanas da Zona Euro. A versão original do DRF/P é, veja-se bem, de um conselho alemão de peritos.
Os EB tenderiam a ser um mecanismo permanente de emissões de curto prazo, estabilizador contra o stress dos mercados e o risco de rollover da dívida soberana.
O adiamento...
A conclusão que fecha o relatório é, contudo, um desencanto. Não é carne nem é peixe. Os 10 acolhem as duas vias, o DRF/P e os EB, recomendam-nas tacitamente, senão mesmo explicitamente, mas adiam-nas, porque, dizem, é prudente aguardar pela cabal observação dos impactos da governação económica e orçamental europeia, nos termos do recente tratado. Ora, ora. Será que esta conclusão fazia parte da encomenda? Seja como for, o Reformador deve ouvir os tecnocratas, mas deve estar acima deles. Quando o tecnocrata é temerário, deve o Reformador cortar-lhe os ímpetos. Quando o tecnocrata é timorato, deve o Reformador rasgar-lhe as vistas.
O debate da dívida em Portugal...
Entre nós, na última sexta-feira, o fresquíssimo relatório dos 10 foi ao debate parlamentar quinzenal. A ocasião e o documento bem poderiam ter servido para iniciar trabalhos sérios e pousados, em direcção a uma futura plataforma de entendimento. As partes, porém, estiveram em contenda, ouriçaram-se e fecharam-se nas suas posições, em que cada um tem alguma razão mas não tem a razão toda. Não há que recear um debate sensato da dívida. Há que procurar fazer dele um motivo de elevação e de substância, de construção, de cedências mútuas, de pragmatismo, de sentido nacional. A questão da nossa dívida soberana é de todos. A solução não é pertença de um partido, ela deve ser acordada e traduzida em expressiva maioria absoluta do Parlamento. Deve ser uma proposta defensável e apresentável, deve usar os bons ensejos como este do relatório dos 10 (eles convidam, aliás, os políticos europeus a um largo debate). E deve abranger diversos outros compromissos de esforço interno. O Governo e o Parlamento, cada um na sua segregação de poderes, poderão fazer valer uma honrada proposta portuguesa, mesmo que esta não seja, ou não seja para já, acolhida pela eurocracia e por quem nela mais manda. Estão a germinar as sementes europeias da solução da dívida pública. Portugal tem de estar muito bem preparado, em sintonia interna, em paz e em democracia. Além do mais, o Parlamento português poderá transmitir à Europa uma ideia que valha a pena, talvez uma mensagem institucional com a humildade e a dignidade de quem tem algumas causas a defender, de entre as quais não consta, claro que não, o chamado moral hazard ou risco moral, ou benefício do infractor. Consta o contrário, desde que haja limites.