Europa, para que te quero?
Corpo do artigo
Portugal mudou substancialmente ao longo dos últimos 27 anos. É uma evidência. A entrada na CEE provocou, como diriam hoje, uma verdadeira "refundação"! Construímos uma Administração Pública moderna, um Serviço Nacional de Saúde exemplar, uma reforma da Segurança Social que procurou antecipar previsíveis riscos de insustentabilidade, uma rede de comunicações terrestres que cobre todo o território nacional, um sistema fiscal eficiente, um lugar pioneiro na promoção das energias renováveis. Desfrutamos de um bom sistema educativo e atingimos um nível científico e tecnológico de qualidade internacional. Realizamos progressos notáveis na igualdade de género, no combate à violência doméstica, na civilidade e apetrechamento das polícias, e as nossas forças armadas asseguram uma participação digna nas missões de paz internacionais. No plano da cultura e dos costumes, na execução das reformas políticas e institucionais, na transposição das diretivas da União, aparentemente, tudo corria bem e em conformidade. Cumprimos os planos de equilíbrio financeiro, entre 2005 e 2008, e quando chegou a crise internacional - sempre em consonância com as recomendações internacionais e as exigências da moeda única - adotamos políticas económicas expansionistas para evitar a ruína iminente resultante da bolha especulativa criada pela irresponsabilidade do sistema bancário mundial e para salvar os bancos nacionais. Tudo parecia continuar a correr bem.
Tudo, exceto o modelo de desenvolvimento económico e as assimetrias crescentes que desertificaram o Interior do país e dilaceraram o território nacional. Ao longo dos últimos 27 anos, os nossos empresários e as instituições públicas de planeamento executaram um audacioso programa de adaptação e integração da nossa economia no espaço económico e monetário da União Europeia. Apesar do ambiente de profunda incerteza marcado pelo processo imparável da globalização económica, aceitou-se sem discussão nem a mínima reserva de prudência, o modelo "recomendado" do "país de turismo e de serviços", e foram acolhidos com entusiasmo todos os incentivos ao abandono da terra, à liquidação das pescas, à industrialização da floresta e também, claro, ao investimento em cursos de formação profissional abundantemente financiados pelo Fundo Social Europeu que mobilizaram o engenho de novas empresas e associações empresariais, dos sindicatos, das misericórdias, de universidades públicas e privadas além, obviamente, das múltiplas clientelas partidárias. Implantou-se, assim, um "empreendedorismo" de tipo "pavloviano" que substituiu o cálculo do risco, a ponderação das oportunidades de mercado, a vontade de inovar, as considerações de interesse público e de bem comum, num mero reflexo exclusivamente condicionado pela distribuição dos incentivos magnânimos inventados pelos "eurocratas" e a confeção da "receita" mais certa para os captar - naturalmente, ao gosto da burocracia de Bruxelas.
Enão faltaram, para aguçar "a arte e o engenho" deste país "refundado", as mais severas auditorias, inspeções e comissões de acompanhamento com toda a panóplia de instrumentos de fiscalização e controlo aptos a garantir o cumprimento escrupuloso de todos os requisitos e a obtenção dos resultados esperados! É por isso obscena esta quebra da solidariedade europeia logo que tudo começou "a correr mal", na Grécia, na Irlanda, em Portugal, Itália e Espanha, mais ou menos por esta ordem, por forma a estigmatizar "os bárbaros do Sul". São hipócritas e mal-intencionadas as denúncias dos vícios recém-descobertos da preguiça, da corrupção, do nepotismo, da falsificação de contas com que se pretende alienar a incompetência, a cupidez, os erros e as cumplicidades que conduziram a Europa à sua miséria atual. É um escândalo, uma leviandade sem perdão que a pretexto das suas próprias impotências e miopia política, a Europa se atreva agora a provocar os fantasmas da barbárie que lançou o Mundo em duas guerras mundiais e ergueu esse sinistro monumento ao horror que é a memória do holocausto.