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Era minha intenção escrever este texto há mais tempo. Mais exactamente, queria tê-lo escrito antes de o texto legislativo que tornou lícita, em certas condições, a eutanásia ser remetido ao Presidente da República. E até tinha um título para esse escrito, cuja razão exporei mais adiante, qual seja: "Questões estruturantes".
Contudo, o início da brutal campanha de descrédito do Governo (que, todavia, para usar uma linguagem popular, se pôs totalmente a jeito - quando é que a classe política irá aprender que há mesmo certas linhas que não podem ser ultrapassadas por quem quer ser governante e bem assim que, nos tempos que correm, concorde-se ou não com essa situação, é impossível manter em segredo a vida pessoal de quem quer que seja?) e a certeza de que, com um elevadíssimo grau de probabilidade (acima dos 99%), o Presidente iria submeter esse diploma à fiscalização prévia do Tribunal Constitucional, fizeram-me aguardar mais alguns dias antes de enviar para publicação o que agora escrevo.
E as declarações que venho ouvindo e lendo dos "constitucionalistas oficiais" que, como sempre, sem qualquer humildade intelectual, acham que são os donos da verdade e que as suas interpretações são as únicas possíveis e legítimas, fizeram-me mudar o título desta peça.
Surgiram na minha mente duas hipóteses de título, esperando eu que Paul MacCartney e os herdeiros de José Mário Branco me perdoem o atrevimento: ou a "Long and winding road" do primeiro ou a "Travessia do deserto" do segundo, esta última por causa dos versos iniciais da canção (Que caminho tão longo/Que viagem tão comprida). Nos dois casos, as palavras são bem significativas. Até na sua tristeza, que é o sentimento que me assola nestes dias terríveis que estamos a viver. Escolhi o título da canção inglesa apenas por ser o mais curto e traduzi-o para português.
Voltando ao tema em si, é indispensável começar por realçar que a diferença entre aqueles que querem tornar lícita, em certas condições, a indução da morte concretizada com o auxílio de profissionais de saúde e os que dizem, de forma simplista, "não à eutanásia", resulta tão só da hierarquização que cada um desses grupos de pessoas dá aos valores éticos comuns à Civilização Ocidental democrática (porque há uma Civilização Ocidental não democrática - a título de mero exemplo, a cultura russa, mas há outras que cabem nessa categoria). Ou seja, neste debate - que para alguns é, infelizmente, um confronto e até uma guerra - não há éticos num lado (num só lado) e desalmados e ímpios no outro.
O que acontece, simplesmente, é que esses tais ímpios e desalmados consideram que a dignidade da pessoa humana e a liberdade individual se sobrepõem a um considerado absoluto direito à vida, entendendo esta em abstracto e como algo distante e diferente da vida de todos os dias, que é vivida pelos reais e concretos seres humanos que todos nós somos.
E, naturalmente, consoante prevaleça uma ou outra dessas diferentes visões do Mundo e da Vida, assim a Comunidade de que fazemos parte se organizará social e politicamente de forma diferenciada. Daí a expressão "questões estruturantes" a que antes aludi, porque a opção por um ou pelo outro desses caminhos constituirá, perdoe-se o simplismo da expressão, a coluna vertebral da organização política e cultural da Sociedade e do Estado que agrega as pessoas cuja maioria procedeu a essa escolha.
Daí que desde o início - ou seja, desde que há cerca de 25 anos o então jovem deputado do Partido Socialista Sérgio Sousa Pinto criou e divulgou esse slogan político - me tenha oposto à referência "questões fracturantes", que, na altura, se reportava ao aborto, às uniões de facto e aos direitos das comunidades homossexuais, campanhas nas quais, apesar dessa minha objecção, também colaborei.
Nunca poderei ter a certeza disso (é o terrível "e se"), mas seja-me permitido pensar que se essas questões tivessem sido colocadas como eu sempre entendi que o deveriam ser (e que é a maneira que antes expus) e talvez tudo hoje fosse mais fácil para aqueles que querem romper de vez com os resquícios culturais e políticos do Estado Novo que, no presente, ainda perduram no inconsciente colectivo e nas conscientes e bem esclarecidas mentes de ainda demasiados portugueses.
Colocar os problemas em termos de uma guerra entre "nós" e "eles", aviltando e até desumanizando não apenas as posições daqueles que não concordam com as nossas opiniões, mas também essas próprias pessoas - e é isso que a palavra fracturantes significa e representa, pois está associada à ideia de existência de um abismo intransponível entre esses "lutadores", nem sequer só adversários, mas também inimigos -, não produz esclarecimento nem avanço cultural, conduzindo, ao invés, a um entrincheirar de posições, geradora de conflitos perturbadores da paz social e da tranquilidade pública.
Prefiro a isso a ideia de que a Comunidade constitui um tecido social elástico, que é capaz de acompanhar as alterações das mentalidades dos seres humanos que a compõem e, de igual modo, de permitir a coexistência pacífica no seu seio de grupos sociais com distintas percepções da Realidade e com diferentes convicções acerca do modelo de organização social. Tudo isto, claro, desde que respeitem, na íntegra, o Pacto Social estabelecido e aceite por essa Comunidade, o qual está, na maior parte dos países, inscrito numa Constituição Política.
A verdade, porém, é que, em Portugal, a ideologia dominante - tanto à esquerda como à direita do espectro político - nunca teve em grande conta o valor da dignidade das concretas pessoas humanas que por aqui vivem, e o valor da liberdade individual. Bem pelo contrário, afirmo eu, esses valores éticos são não apenas desprezados, mas até ferozmente combatidos por muitos.
Bem pode o Gilberto Gil cantar que "quem sabe de mim sou eu" e bem pode William Ernest Henley proclamar no seu poema Invictus que "eu sou o mestre do meu destino, eu sou o comandante da minha alma", que haverá sempre alguém iluminado a querer impor-lhe o modo como deve gerir a sua vida.
Ora acontece que, para a cultura ocidental democrática, cada ser humano é uma criatura única e irrepetível e, por essa razão, possui em si mesmo uma enormíssima dignidade individual. Aliás, de acordo com a Bíblia (Livro do Génesis), Deus criou o homem e a mulher à sua imagem e semelhança e dotou-os a ambos de livre arbítrio. Em suma, com capacidade de escolha.
Daí que, como já referi, o princípio essencial da Democracia e do Estado de Direito é o de que, até prova em contrário, todos os seres humanos são dotados de liberdade e são capazes e competentes para gerir a sua vida e o seu património.
E esse é um princípio com força jurídica vinculativa, sendo o mesmo a base de toda a vida social e de todas as relações que se estabelecem entre as pessoas singulares e colectivas naquilo a que os juristas chamam comércio jurídico, nomeadamente no que respeita à celebração de contratos. E o que vale para definir se um contrato é ou não válido e vinculativo, tem de servir para todos os demais aspectos da vida de cada ser humano individualmente considerado, incluindo o momento da sua morte.
Acresce que, em Direito, a ordem dos factores não é arbitrária; não é, de todo, irrelevante o facto de a dignidade da pessoa humana ser mencionada logo no artigo primeiro da Constituição da República e o a inviolabilidade da vida o ser apenas no artigo 24º dessa Lei Maior, sendo que a noção de dignidade social volta a ser referida no artigo 13º desse Diploma.
O significado que retiro dessa ordenação é que a dignidade e a liberdade individuais são valores éticos que, para a Comunidade nacional portuguesa, são hierarquicamente superiores ao direito à vida (que, naturalmente, também é um importantíssimo princípio ético na estrutura de valores que constitui a espinha dorsal desse tecido social comunitário).
E como estabelece o artigo 335º do Código Civil, diploma que entrou em vigor no dia 1 de junho de 1967, havendo colisão de direitos desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.
Eticamente superior, bem entendido, porque algo que a Humanidade aprendeu com o horror que o positivismo jurídico permitiu durante o domínio da ideologia nazi-fascista, foi que uma disposição normativa só pode ser considerada como sendo "Direito" se tiver subjacente a ela um valor ético que justifique a sua existência e nela esteja consubstanciado.
E isso é algo que nenhum jurista, nem sequer os menos habilitados, pode ignorar - ou melhor, como estabelece o artigo 6º desse mesmo Código Civil, a ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas.
E como se tudo isto não fosse já suficiente, importa recordar que o direito à vida não é, de todo, absoluto.
Se assim fosse, nunca poderia ser admissível que alguém matasse outrem em legítima defesa própria e/ou de terceiro (e matar em legítima defesa própria e/ou de terceiro não constitui a prática de um crime), que um soldado matasse, mesmo não em directa legítima defesa, um inimigo no campo de batalha, ou ainda que o suicídio tenha deixado de ser uma forma de homicídio, como era em Portugal até à entrada em vigor do Código Penal vigente no nosso país (perdoe-se o humor negro, mas é claro que só o suicídio tentado poderia ser perseguido criminalmente, porque o consumado não o podia ser dada a morte do agente que praticou o crime).
Espero sinceramente que os Juízes do Tribunal Constitucional não se esqueçam destes singelos princípios. E que o mesmo aconteça com o Presidente da República, ele próprio um jurista.
O Direito não é uma ciência, mas tem regras técnicas que têm mesmo de ser obedecidas sob pena de ser posto em causa o regular funcionamento das instituições e a fé pública que as mesmas têm de merecer, a bem da paz social.
O Direito não é (não pode ser de todo) um ringue de luta livre em que vale tudo até mesmo tirar olhos. Neste caso os "olhos" da técnica jurídica.
Mas também seria muito bom que aqueles que absolutizam esse abstracto direito à vida aceitassem que, neste momento, a maioria social dos portugueses é (finalmente) já favorável à protecção da vida com dignidade e ao princípio da predominância da liberdade individual na gestão da vida pessoal de cada um de nós e que essa vontade está devida e legitimamente representada na maioria política que presentemente se formou na Assembleia da República.
Como, obviamente, não podia deixar de ser em Democracia, essas pessoas têm o direito de procurar convencer os outros cidadãos de que são eles que têm razão, mas respeitar as instituições e a soberania popular significa deixar que as maiorias políticas que se formam numa dada Legislatura possam concretizar os seus desígnios.
Se assim não acontecer, estaremos, todos nós, condenados a permanecer neste deserto tão grande, percorrendo, sem um fim à vista, este caminho tão longo. E tão sinuoso.
*Juiz Desembargador Jubilado
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.