Evocação de Mariano Gago
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A cultura, a ciência, a investigação científica e a inovação tecnológica são as áreas onde se produziram as mudanças mais prometedoras da sociedade portuguesa em 30 anos de integração europeia. O crescimento e a qualificação dos serviços públicos na saúde, na educação ou na segurança social limitaram-se a responder às expectativas de uma população mais instruída e exigente, ansiosa por se libertar da mediocridade e da humilhação a que meio século de fascismo a condenara, e por isso aderiu com entusiasmo aos novos padrões culturais da Europa onde pretende inscrever o seu destino.
José Mariano Gago desempenhou um papel decisivo neste processo de transformação profunda e complexa. Excluímos, evidentemente, o folclore das "praxes" estudantis que subsiste, mas a verdade é que as universidades portuguesas estão, hoje, irreconhecíveis. Apesar das malfeitorias dos últimos quatro anos - que, se não forem travadas em breve, são capazes de deitar por terra tudo o que foi pacientemente construído - estamos perante um sucesso extraordinário, conseguido paulatinamente, sem excessiva contestação ou conflitualidade corporativa. Um êxito patente na atividade dos centros de investigação - quer nas ciências quer nas humanidades - no empenhamento dos professores em grupos de pesquisa e na cooperação interdisciplinar, na iniciativa e no dinamismo na elaboração e promoção de projetos e no envolvimento em parcerias internacionais, mas também no modelo mais aberto de governança institucional, na atenção concedida à conjuntura, aos agentes externos e às solicitações da sociedade envolvente, que vieram alterar substancialmente as nossas tradições académicas e derrubar velhos atavismos.
A obra reformadora de Mariano Gago cumpriu-se com irredutível tenacidade ao longo de quatro mandatos não consecutivos, dois deles incompletos, em governos da responsabilidade de diferentes primeiros-ministros e apenas uma vez com maioria absoluta. Mariano Gago tinha um desígnio político ambicioso e uma perceção realista das condições indispensáveis para o concretizar. Era um homem coerente e de vastos horizontes que pôde contar com a solidariedade dos governos que integrou e que soube conquistar um largo consenso na sociedade portuguesa, transversal ao espetro partidário, que perpetua a sua obra para além da sua própria vida.
Entretanto, a economia e as finanças tornaram-se o tema dominante na Comunicação Social, invadiram o espaço público e instalaram as vicissitudes da luta pela sobrevivência quotidiana, no lugar da solidariedade, da esperança e dos grandes desígnios coletivos. Às tragédias que assolam os nossos vizinhos - na Ucrânia, na Síria, na Palestina, na Líbia, no Mediterrâneo - responde-se com o reforço das medidas de "defesa e segurança". Dentro de portas, enquanto alguns seguem com indiferença o combate épico dos gregos para se libertarem da penúria drástica que lhes foi imposta ao longo dos últimos cinco anos, outros limitam-se a aguardar cinicamente pela sua rendição ou o abandono "espontâneo" da união monetária. Aqui, para glória do equilíbrio orçamental, sacrificam-se as vidas dos pacientes que não conseguem ser atendidos nos serviços de urgência dos hospitais públicos.
Investido de uma normatividade totalitária, o discurso "económico" apoderou--se da ação política e prepara-nos para novas deceções. É uma armadilha perigosa. É por isso de saudar que António Costa tenha vindo ao Porto, no último fim de semana, para falar das políticas de educação, da "sociedade do conhecimento" e da paixão republicana pela "escola pública". Se as preocupações humanas se reduzissem à "escassez dos recursos" - matéria eminentemente económica - nunca teríamos chegado a sair da idade da pedra. Bem pelo contrário, a política é uma arte que se ocupa de múltiplas dimensões da vida das pessoas, das suas necessidades e aspirações, do seu destino comum, da gestão do presente e da construção do futuro.