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Falemos de “Razões e paixões - uma entrevista de vida conduzida pelo jornalista Humberto Simões”, de Manuel Maria Carrilho (Grácio Editor, Fevereiro de 2024). Ocorreu-me um pequeno livro de Cioran, “Exercícios de admiração” - que começa, ironicamente, com Maistre, e que ele subintitula de “ensaio sobre o pensamento reaccionário”. Porque é disso que aqui se trata: de um exercício de admiração. Carrilho, e o seu competente entrevistador, consegue ir além daquilo que recusou fazer, uma autobiografia. Se Malraux escreveu umas “antimemórias”, arriscaria afirmar que Carrilho e Simões nos dão uma “antiautobiografia”.
Há, no livro, várias justificações fundamentadas no próprio, e em outros autores, para o objectivo paradoxalmente desapaixonado de Carrilho, em quem a palavra “admiração” também conta, e sem aquela conotação palonça que se lhe atribui. A vida, contada por Carrilho através das perguntas resultantes de mais de cem conversas com H. Simões, é paralelamente a vida luminosa das ideias, logo, das razões e das paixões. Nunca (Carrilho é de uma frieza lúcida e de uma visão impiedosa das coisas que Cioran encontra, por exemplo, em Michaux) ressuma o mais ligeiro deslize para a vulgaridade ou para a espuma dos dias de que vive (termo seu) o “infoentretenimento”.
Não procura a “salvação” por falar tão desabrida quanto substancialmente, até, do vulgar. Daí o estímulo e a euforia com que podemos ler este livro em qualquer um dos seus dez capítulos. É de um amigo fidelíssimo, é certo, mas eu já aprendia com Carrilho muito antes das nossas deambulações por Lisboa e Paris. Existe, evidentemente, o gosto e o génio da provocação (não é para todos, como explica Cioran naquele primeiro ensaio), o que parece relevar mais do pensamento de Direita do que de um socialista democrático.
Mas, é esse o seu sentido etimológico, criticar é separar. E Carrilho separa como ninguém. Experimentem os parágrafos dedicados à nossa miserável “actualidade” política. “Costa talvez nunca tenha pensado chegar onde chegou, não preparou verdadeiramente um programa ou uma equipa, tudo com aquela rapaziada que herdou de José Sócrates, como não soubéssemos já o que ela valia”. “Marcelo percebeu sempre muito bem os “factos” políticos, mas nunca entendeu o que são os “símbolos” políticos. E são estes que fazem os presidentes.” Quanto aos “acidentes de trabalho”, expressão deliciosa de Agustina que Carrilho recupera para falar de outras coisas, tudo sai equilibrado em coragem cívica e pessoal contra o unanimismo, a subserviência, a cobardia e a mediocridade gerais. Sem confundir jamais “as ideias com as pessoas que as defendem”. É obra. Que é vida. E continua.
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)