Segunda-feira, Mário Centeno, envergando o cachecol dos campeões da Europa, apresentou-se em Bruxelas para a reunião do Eurogrupo e foi efusivamente felicitado por todos os seus pares. Foi assim, em ambiente festivo e de aparente bonomia, que se desenrolou o segundo episódio do melodrama da aplicação das sanções prescritas no malfadado "pacto orçamental" que continua a atrapalhar a economia e a atormentar a vida dos povos da União. No dia seguinte, porém, chegados à hora do Ecofin, a bonomia dissipou-se. Enquanto o precário Governo de Espanha se resignava a subir os impostos - para acomodar a ortodoxia orçamental professada pelos seus irmãos do Partido Popular Europeu - o Governo de Portugal ousou assumir o confronto e chamar os bois pelos seus nomes.
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À mesa da reunião dos ministros das Finanças europeus regressaram os conflitos de cuja solução, hoje, verdadeiramente depende a sobrevivência do projeto político europeu. O absurdo e a hipocrisia dos que pretendem castigar Portugal por "erros" do anterior Governo do PSD/CDS - que sempre foi gabado pelos correligionários europeus, como exemplar cumpridor das políticas de ajustamento que lhes recomendaram - foram ali denunciados com rigor e frontalidade. De facto, como se pode explicar que Passos Coelho e Paulo Portas, Vítor Gaspar, Maria Luís Albuquerque ou Cavaco Silva, aqueles que precipitaram a bancarrota para conseguir que Portugal fosse submetido ao programa de resgate e que publicamente declararam, com exuberante entusiasmo, que até pretendiam ir "além da troika" - tenham falhado todas as metas que se propuseram alcançar até ao fim dos quatro anos de ajustamento, gozando de absoluta impunidade, e que agora, de repente, os 0,2% de desvio orçamental que nos legaram como herança, se possa tornar pretexto para a aplicação de sanções inéditas?
Vão longe, porém, os tempos da muralha de silêncio e cobarde indiferença contra a qual se ergueu ingloriamente, reuniões a fio, mês após mês, o ex-ministro das Finanças grego, Yanis Varoufakis! O pluralismo político regressou, ainda incipiente, às instituições da União, e ameaça a tradicional unanimidade pseudoliberal fruto do "coito danado" - para usar a metáfora de Garrett, nas páginas iniciais das "Viagens na minha terra" - entre a obsessão orçamental germânica e a especulação parasitária dos apologistas incondicionais da desregulamentação financeira internacional. E que entendem que a soberania popular não passa de um arcaísmo remanescente de velhos estados decadentes. Foi neste cenário improvável, como lembrava aqui, na semana passada, que o Governo da Esquerda conseguiu provar que afinal havia alternativa e que era possível governar em sintonia com as aspirações expressas pelo voto popular. Que a democracia, enfim, continua a fazer sentido. Meio ano bastou para demonstrar que o país não estava condenado aos caprichos dos mercados financeiros, que a dócil submissão aos interesses dos credores internacionais e às recomendações dos burocratas de Bruxelas não era uma fatalidade e que, pelo contrário, o dever do Governo da República é a defesa intransigente dos interesses do povo que o legitimou.
Por isso, merece atenção um comentário de Maria Luís Albuquerque. Na ausência de argumentos técnicos para justificar que Portugal fosse condenado, explicou que teria sido "na apresentação destes argumentos que o Governo falhou" e que, logicamente, não teria falhado por motivos técnicos mas sim por inépcia ou por "razões políticas". Como se não fosse "política" tudo o que os governos fazem! Mas de facto existe uma diferença essencial entre aqueles que promovem as políticas em que acreditam e os que se resignam a ser mero instrumento das políticas alheias, reduzindo a política a uma técnica de gestão. O seu correligionário Pedro Passos Coelho rapidamente trocou as promessas que fez aos eleitores na campanha para as legislativas de 2011, pela autoridade do "programa de ajustamento" abençoada por Bruxelas e Berlim. Durante quatro anos expulsaram o debate político da nossa vida democrática e praticaram, no exterior, a mais contrita subserviência. Finalmente, estamos na Europa de cabeça erguida. Porque o Governo de Esquerda existe e recomenda-se.
* DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL