Não é verdade que as situações de emergência crítica como esta que presentemente enfrentamos e cuja "cartografia" se encontra minuciosamente descrita no dito "memorando de entendimento" excluam a indispensável margem de autonomia reclamada pelo debate público e os procedimentos de decisão democráticos.
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De facto, ao escolher a "austeridade" como "espinha dorsal" do seu discurso reformista, o Governo fez uma opção clara em face de outras opções possíveis, não se limitou a aceitar um destino fatal constrangido por circunstâncias inelutáveis. E as reformas que pretende justificar com o discurso da "austeridade" têm por finalidade extinguir a presença do Estado em setores cruciais da atividade económica - como, por exemplo, a energia e as comunicações - suprimir os serviços públicos para os quais exista fornecedor privado alternativo - designadamente, na saúde, na educação e na ciência - e reduzir à mais simplificada expressão aquilo que, de todo, não pode alienar: a ordem, a segurança, a justiça e a defesa. Pretender que esta política é liberal ou sequer neoliberal - apenas por repetir conhecidos lugares comuns dos epígonos da Escola de Chicago - é completamente enganador. O aumento dos impostos, a "nacionalização" dos fundos de pensões privados, a mobilização de recursos públicos para suprir as fraudes e o incumprimento de instituições financeiras particulares, a alteração unilateral da duração da jornada de trabalho e a redução de remunerações de trabalhadores por imposição legal, são exemplos de um intervencionismo que nada tem a ver com qualquer modelo de liberalismo antes configurando, com meridiana clareza, um programa político neoconservador.
Deste programa parece estar também ausente qualquer desígnio sério de lançar a reforma territorial, embora não subsista qualquer motivo que prejudique a aprovação de uma nova lei do governo local - matéria que há muito reúne o consenso dos partidos do Governo e da Oposição - e nada impeça o avanço de um processo concertado de integração de freguesias, aliás já ensaiado em alguns locais. A grande questão, todavia, é a empedernida resistência à criação das regiões administrativas que a pretexto da crise tem vindo a conquistar recentemente inesperados adeptos. O argumento é absurdo porque admite, na prática, que a regionalização seria um luxo e que, apesar dos putativos benefícios que a prazo poderia trazer às populações não existem atualmente os meios disponíveis para suportar os custos da sua instituição imediata. É fácil demonstrar a falsidade do argumento. Muito se pouparia, substituindo os atuais 18 círculos eleitorais que correspondem aos distritos por apenas 5, coincidentes com as áreas das comissões de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR). Para além dos ganhos de racionalização e simplificação da própria administração eleitoral, qualificava-se o voto e os mandatos conferidos a um território e a uma comunidade efetivamente dotada da dimensão estratégica indispensável à promoção do desenvolvimento económico e social. Os corpos técnicos das CCDR convertiam-se, com meros custos marginais, na estrutura dos governos das regiões que passavam a ser eleitos pelos cidadãos, com evidentes ganhos democráticos. As funções que persistem nos distritos eram distribuídas entre os municípios e as novas regiões, com ganhos de proximidade e simplificação organizativa. Grande parte das atuais estruturas desconcentradas da administração central - saúde, educação, emprego, segurança social, agricultura, ambiente, economia, obras públicas e administração interna - podiam ser absorvidas pelos governos regionais ou reduzirem-se a uma dimensão mínima de representação institucional junto do governo da região, com incalculáveis poupanças!
Não há reforma das instituições, nem racionalização dos serviços, nem saneamento financeiro sem a reconfiguração territorial da administração do Estado. Se o Governo está seriamente empenhado em eliminar desperdícios e reduzir custos, tem uma solução fácil e barata: criar as regiões administrativas, ainda nesta legislatura!
(Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico)