Jamais poderei esquecer o instante em que o poeta Sérgio Vaz, na laje do bar do Zé Batidão, me disse, apontando a mancha escura ao longe no cimo do morro, que ali era o cemitério onde se sepultavam os jovens assassinados. Há anos, em dias de chuva, por não ser escorado, as terras desciam expondo os caixões, espalhando os corpos.
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Os corpos voltavam ao casario, de todas as maneiras. Absurdamente. Se alguma dúvida havia acerca do desafio de habitar a periferia de São Paulo, estaria sanada. A periferia é uma perturbação. Ela contende com a normalidade e a simples normalidade é a exigência mais premente dos seus habitantes.
Ali, na Vila Piraporinha, Sérgio Vaz inventou uma revolução. Completa agora 18 anos o sarau de poesia da Cooperifa, que tem inspirado tantas outras iniciativas semelhantes e que vai ao encontro de um protesto fundamental a que se pode dar o nome genérico de "lugar de fala". No "lugar de fala" não há mediação. Cada um fala por si, numa exigência de testemunho que ninguém senão o próprio pode suprir. Por isso, é tão impressionante quando Nelson Maca irrompe de entre a pequena multidão levantando seu poema-bandeira que reza: "Hoje, quilombo vem dizer / favela vem dizer / a rua vem dizer / É nós por nós". As populações silenciadas inscrevem-se na História. O que Sérgio Vaz faz é isso, inscrever a periferia na História, habilitá-la a ter sua própria memória e seu próprio futuro.
Enquanto o Brasil se obstina com a agressão às minorias, a todas as cidadanias não padronizadas no modelo branco e masculino, há um movimento crescente de fortalecimento daqueles que até agora não foram justificados. O que escutamos nas vozes dos poetas do sarau é sobretudo essa demanda por respeito. De Ni Brizante a Daniel Minchoni, da Dona Edite ao Sérgio Vaz, o que se sente é de importância extrema. Ali não se perde tempo com cosmética. Ali é a verdade que sai à rua. E a verdade vem dizer que não vai haver serviço prestado à prepotência dos grandes centros. Não vai haver submissão. A periferia virou o centro de si mesma. Não vai pedir licença para acontecer.
Há um homem engravatado que me vem dizer que o Brasil é uma democracia, ao contrário da Venezuela. Não vou a tempo de lhe responder. Foge como os covardes. Enquanto os imbecis ficarem insistindo na polarização Fascismo ou Venezuela, não vão entender que o povo já está vindo de muito mais longe. Está vindo de séculos de escravização e extermínio. Na vastíssima periferia do país, a política não opera por partidos, opera pela sobrevivência, e não vai haver como continuar a iludir aqueles que vivem na pura evidência.
*Escritor