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Como povo, não estávamos imunes. Apenas dormentes, silenciosos e no armário, prestes a entrar no jogo de ajustes que os recalcamentos convocam já tarde, depois das horas macias em que fermentou o ódio que julgávamos impossível. A estupidez venceu, para já, o confronto. Perante a desinformação, o populismo fez o seu trabalho para cultivar o medo e o ressentimento e, nos últimos anos, Portugal tem escrito páginas inteiras sobre azedume e vinagre, depois de décadas em que se silenciou pela falta de boleia prestada aos pequenos demagogos.
Culpar o povo quando as elites não fizeram o seu trabalho, desprezando boa parte dos anseios de reconhecimento das pessoas nos seus representantes, baixando a expectativa ao ponto de ser indiferente a mentira ou a verosimilhança, é absurdo. As redes sociais ajudaram a criar o pântano, sobretudo a partir do momento em que o poder de quem as detém está ao serviço dos piores escroques. Mas factos são factos e os episódios sucedem-se, agora que não são só os muitos heróis virtuais do teclado a odiar do sofá e o sentimento de impunidade cresce nas ruas.
Há sete anos que a Comissão Contra o Racismo e a Intolerância (ECRI, órgão do Conselho da Europa que monitoriza a discriminação, xenofobia e intolerância na União Europeia) não publicava um relatório sobre Portugal. E eis-nos de volta ao discurso de ódio contra migrantes, ciganos, negros, LGBTI. Também às mulheres, em nome de um discurso passadista e bafiento que se suporta e replica em homens que não aceitam o medo que têm quando não encontram razões para o seu insucesso ou partilha de direitos. Os crimes relacionados coma discriminação e incitamento ao ódio cresceram mais de 200% nos últimos anos e 2024 foi aquele em que se registaram mais casos (421). Chegamos aqui, no momento em que o capítulo sobre a presença de grupos de extrema-direita em Portugal foi retirada, inexplicavelmente, do Relatório de Segurança Interna (RASI).
O confronto com a realidade é exigente e não se pode silenciar. Numa semana em que se percebe que um grupo neonazi, desmantelado pela PJ, era comandado por um chefe da PSP que recrutava terroristas que soubessem usar armas de fogo (muitas delas apreendidas na Operação Desarme 3D), o que pode surpreender é a dimensão do que não se conhece. Tanto nas forças policiais como no anonimato da rotina dos dias, como se percebe pelo caso de racismo na Carris Metropolitana de Cascais. Com ou sem farda, tem faltado coragem para identificar, punir e trazer para os tribunais o que nem sequer entra no discurso político de um Governo que parece querer continuar a olhar para o país à luz dos seus antigos brandos costumes.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia