Corpo do artigo
Com a mesma regularidade da passagem das horas ou das fases da Lua, chegamos à estação dos fogos, todos os anos, pelo verão. A floresta arde regularmente e o fogo tudo consome: árvores, casas, coisas, bichos, os próprios seres humanos, num desfile trágico impiedosamente registado por profissionais ou amadores e incessantemente servido em todos os espaços informativos. É assim, há muitas décadas, o nosso verão. A aparição cíclica dos incêndios florestais conferiu-lhes o estatuto de catástrofe inevitável. Ao contrário da água - que derrubou um pilar da ponte de Entre-os-Rios - não me recordo de que alguma vez tenha tremido um Governo ou caído um ministro por causa dos fogos.
E bem podia ter acontecido! Porque é muito longa a cronologia das falhas registadas no sistema de comunicações de emergência em que agora se reparou. Pelas minhas contas, abrange cinco governos e implica a maior parte das forças políticas representadas no Parlamento.
É verdade que o problema foi crescendo na proporção direta da sofisticação tecnológica que hoje facilita a transmissão minuciosa e ao vivo do apocalipse sazonal. Mas cresceu também a área ardida, o montante dos prejuízos e a cifra negra das vidas humanas, na proporção direta da desordem florestal, da expansão contínua do pinhal e do eucalipto, e da obsolescência das estruturas de combate aos fogos, ainda baseadas em formas de associativismo local herdadas de uma era remota alheia ao destino funesto que nos esperava: o abandono dos campos, a desolação das aldeias, a febre das autoestradas por onde acelerou a desertificação.
Por isso, reconheça-se que apenas peca por tardia esta súbita politização dos fogos florestais. Para encontrar as respostas e encetar as reformas adequadas há que trabalhar com seriedade e determinação, sem pressas nem cedências à exibição instantânea de falsos resultados! Porque é indispensável quebrar definitivamente este ciclo incendiário de cinismo e de irresponsabilidade, para rejeitar a negligência, o oportunismo condescendente, o centralismo ignorante e atávico que década após década transformaram o interior do país num perigoso vazio, iludiram "a província" com favores irrisórios e reduziram a floresta a um espetáculo de pirotecnia.
Esta é, de facto, uma verdadeira função soberana do Estado: proteger o seu povo e o seu território. Uma missão irrenunciável pela qual este Governo prestará contas.
As funções de soberania descrevem o essencial da justificação do Estado. Pelo contrário, a ideia de "Estado mínimo" é um argumento demagógico que sempre foi usado apenas para o destruir. Durante quatro longos anos ouvimos os responsáveis máximos do Governo da coligação PSD/CDS encarecer a urgência de liquidar aquilo que chamavam "as gorduras do Estado". Foram alienados, ao desbarato, os anéis e os dedos. Se mais tempo tivessem, mais longe teriam levado a sanha demolidora que arrasou a escola pública, o Serviço Nacional de Saúde, a Segurança Social, as parcas condições de vida dos grupos sociais mais frágeis - jovens, desempregados, reformados - contrapondo à proclamada inevitabilidade do empobrecimento da maioria, a prosperidade que seria induzida pelos melhores, os mais aptos e empreendedores, uma vez libertados da burocracia inútil e do despesismo crónico da pesada máquina estadual!
Paradoxalmente, já se esqueceram das verdades que proclamavam e dos sucessos que prometeram em vão. São agora, na Oposição, os primeiros a reclamar dos imensos estragos que provocaram, da desconfiança que cultivaram, do descrédito que lançaram sobre um Estado de direito social incipiente que ambicionava colocar-se a par das democracias europeias mais avançadas. A cultura do ódio e do sucesso individual, a qualquer o custo, manifesta-se, flagrante, no desleixo institucional que afeta a segurança de instalações militares, alimenta o recrudescimento da violência e dos preconceitos discriminatórios numa esquadra de Polícia ou aflora impunemente nas declarações odiosas e racistas de um candidato à presidência da Câmara de Loures. Não faltam incêndios para apagar. O que falta, são vozes que denunciem a deriva populista que ameaça as instituições do Estado de direito, o regresso da intolerância e da discriminação, a complacência cobarde de muitos responsáveis políticos.
DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL