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Comecei as celebrações dos 50 anos de Abril no palco, num espetáculo inédito, pensado pelos Clã, partilhado com vários convidados como Paulo Flores, Xullaji, Ana Lua Caiano, Euclides e Jonas, assente num repertório muito vasto (com canções anteriores a 74 e outras de hoje), numa noite de grandes emoções. Enquanto uma multidão comovida cantava “Grândola, vila morena” no Largo do Carmo, onde Carlos Moedas se recusou a montar um modesto palco, nós ouvíamos a voz sobrenatural de Paulo Flores a cantar “Si bu sta dianti na luta”, de José Carlos Schwartz, no palco do grande auditório do CCB. Enquanto nos chegavam imagens dessa multidão de corpos, dançando junto ao velho quartel onde o 25 de Abril se consumou, em Belém a plateia dançava connosco enquanto entoávamos o poderoso refrão de “Eu vi este povo a lutar”, de José Mário Branco.
No dia seguinte, feliz por estar em Lisboa para os festejos, desci algumas ruas até à estação de metro, com destino à Avenida da Liberdade, estranhando não ver cartazes comemorativos das cinco décadas de Abril. A mesma autarquia que encheu a cidade de outdoors de boas-vindas ao Papa, pelas Jornadas Mundiais da Juventude, não tinha gasto um cêntimo para assinalar a efeméride mais importante da democracia. Chegada à estação, vi vários metros passar completamente cheios. Era impossível entrar. Os horários de feriado obrigavam a pelo menos sete minutos de espera até ao próximo veículo e, sem reforço dos serviços, ali ficámos a ver passar metros cheios, até conseguir entrar a custo na lata de sardinhas de poucas carruagens que sobrou, porque pelos vistos, a autarquia tinha-se esquecido que era dia de festa.
Chegada, a custo, à rotunda do Marquês de Pombal, a paisagem era impressionante! Uma multidão compacta, aguardava poder desaguar na Avenida. Ficámos apertados uns nos outros mais de hora e meia, até conseguirmos descer, orgulhosamente, em manifestação. Milhares e milhares de pessoas, de todas as idades e classes sociais, felizes por poder celebrar Abril, de cravo e cartazes em punho, cantando, entoando palavras de ordem, festejando, sem nunca esquecer que o 25 de Abril se celebra com luta e isso é o que faz dele uma data contínua, uma concretização em curso.
Já não se apaga a memória do dia em que, como no Primeiro de Maio de 74, a multidão saiu à rua, generosa e pulsante, para confirmar que está com Abril. O dia em que a Avenida não coube no Rossio, como este não cabe na Betesga, e a mancha humana se entornou por todas as ruas e praças do país, para bater o pé ao fascismo, gritando que nunca mais! Foi mesmo bonita a festa, pá!
Na manhã seguinte, para fechar as celebrações, fui em peregrinação até à Gulbenkian, como quem vai à igreja agradecer as bênçãos após a festa do santo padroeiro, para me emocionar com a exposição de fotografia “As mulheres do meu país”, de Maria Lamas. E foi nesse altar de sororidade e consciência coletiva, perante o legado de uma mulher tão grande, que jurei, como devota de Abril (em confirmação de fé), honrar a sua memória para sempre.