Todos conhecerão as desventuras do ministro Miguel Relvas em Gaia e, depois, numa conferência organizada pela TVI no ISCTE. E todos saberão que anda por aí uma "epidemia" de Grândola, Vila Morena. Em Gaia, o ministro cometeu o erro de tratar aqueles que o invetivavam como crianças traquinas: respondeu com ironia falhada. Tentou trautear a canção, deu a entender que tudo aquilo até era divertido. Para ajudar à festa, foi uma tragédia canora e um desastre por nem saber a letra da "Grândola". O verdadeiro absurdo, no entanto, foi a sua afirmação de que tudo tinha sido normal, quando todo o episódio foi anormal.
Corpo do artigo
No dia seguinte, assistiu-se a algo pior. Um ministro do Governo de Portugal - goste-se ou não, Miguel Relvas é-o - foi impedido de fazer aquilo ao que ia (discursar) e obrigado a fugir em debandada. As imagens são cruéis, falam por si.
É claro que as "manifestações" de protesto foram organizadas, mas não consigo vislumbrar por que razão isso as desqualificaria.
Também é argumento frágil dizer-se que foi violada a liberdade de expressão do ministro. Haja bom senso: como cidadão e como responsável político, Miguel Relvas tem garantida a sua liberdade de expressão, quantitativa e qualitativamente, num plano muito superior ao do da esmagadora maioria dos cidadãos. E não se saber o que continha o seu discurso não é algo que com certeza traumatize ou faça palpitar de angústia o catálogo de direitos fundamentais.
Estes dois episódios não deixam no entanto de ser péssimos, sobretudo no plano simbólico. Revelam que se quebrou a linha ténue que separa o respeito devido à função (não, não é "respeitinho") da eventual ausência de respeito que se possa ter pelo titular da função. E inculca-se a imagem de legitimidades concorrentes. De um lado, a do membro do Governo. Do outro, a dos manifestantes.
Creio, porém, que a legitimidade de protestar é uma coisa. Mas é outra muito diferente colocá-la, naqueles termos de violência verbal e coação física, em plano igual ao da legitimidade democrática de que está investido o ministro. Mesmo porque, a ser aceite a premissa, vencerá sempre o mais forte: o que mais alto berrar, o que mais músculo exibir. Não aceito a premissa nem, portanto, aceito a conclusão.
Dir-se-á que tudo isto é teórico; que o ministro é o catalisador da revolta de um país em carne viva; e que já não tem legitimidade política substantiva. Mas, mesmo que se considere tal, alguém me explique devagarinho, se faz favor, quem representam (por exemplo) os manifestantes do ISCTE? Representam o povo? Se sim, como e em que termos? Representam a "maioria"? Onde e quando foi isso decidido?
Desgraçadamente, ainda pode piorar. Na verdade, a explicação para o descrédito e enxovalho crescentes da classe política deve buscar-se primeiro no interior desta, não nos manifestantes (embora seja tentador fazê-lo). Quando um deputado da Oposição grita "palhaço" na altura em que o primeiro-ministro discursa e os seus colegas lançam sonoras gargalhadas, com o país a assistir; quando os insultos a um membro do Governo são exercício da liberdade de expressão (quando se está na Oposição) mas ataque contra os direitos constitucionais (quando se está no Poder); quando altos-responsáveis da Oposição tratam ou deixam tratar membros do Governo como "tralha" mas ficam enxofrados quando epíteto equivalente lhes é devolvido; quando a divulgação de escutas é ótima se envolver inimigos mas passa a indigna quando atinge alguém do nosso campo, estamos vistos.
Vieram da esfera política, e não do ISCTE, os que na origem quebraram regras de decência e escancararam a caixa de Pandora que agora não conseguem fechar. E isso há pelo menos uma década, desde o Governo Santana Lopes (que, depois, ripostou da mesma forma). Naturalmente que com exceções, muitos dos atores políticos não se respeitaram nem se deram ao respeito. Não podem agora queixar-se, por efeito de refluxo, que muitos cidadãos não os suportem.
Mas, cuidado. Pelo andar da carruagem, qualquer dia vários membros do Governo têm de passar à clandestinidade e só sair à rua de peruca e bigode falso à d'Artagnan.