Um dia, já lá vão 15 anos, foram despejados no betão que estava mais à mão. A construção era de má qualidade, a vocação original do bairro não era o realojamento (se é que um bairro de realojamento tem de ter tipologia específica), mas quem decidiu deve ter seguido o raciocínio pragmático do costume: para quem é, bacalhau basta; as obras públicas têm prioridade; é preciso remover esta gente para onde os olhos não alcancem.
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Assim se fez na Quinta da Fonte, nas várias quintas da fonte que a Área Metropolitana de Lisboa foi criando ao longo dos anos. Por isso o retrato do bairro não é, no essencial, diferente de tantos outros, de que só ouvimos falar a propósito de guerras de gangues ou rusgas policiais. Elevado desemprego, rendimentos baixos, insucesso e abandono escolares, criminalidade, péssimas condições de habitabilidade, degradação de equipamentos colectivos: eis alguns traços comuns.
De repente, um tiroteio transmitido em horário nobre de televisão mediatizou uma faceta que nem todos conheceriam: na Quinta da Fonte, há confrontos, por vezes sangrentos, entre comunidades. Um filme com negros de um lado e ciganos do outro simplifica o que só pode ser complexo, mas tem pelo menos o condão de nos aliviar a consciência. Possamos nós imputar a criminalidade a "estranhos" - diria estrangeiros, ainda que afinal sejam portugueses - e é certo que nos sentiremos muito mais seguros. Nós, os de brandos costumes...
Os prédios da Quinta da Fonte, depósitos de gente de cores e culturas diferentes, cumpriram a missão de proporcionar um tecto a realojados que entre si nada tinham em comum. Mataram laços de solidariedade e redes de socialização. Ou substituíram-nos por desconfianças que o tempo multiplica. Estava ali um barril de pólvora, como diagnosticava, já em 2007, o estudo do Observatório da Imigração agora redescoberto, mas ninguém quis saber.
Na hora da aflição, como não podia deixar de ser, ganharam créditos as soluções de fim de linha. Num país com pouca apetência para prevenir, que prefere deixar para amanhã o que pode fazer hoje, logo teria de aparecer o ministro da Administração Interna a prometer medidas especiais de reforço de policiamento e o líder do CDS, com o pé a fugir para a chinela, cedendo ao mais primário dos populismos: "os polícias prendem e os juízes soltam".
Uma "boca" como esta, que amiúde se ouve em conversas de café mas não devia entrar no discurso de um político, torna legítima a suspeita de que Paulo Portas deseja entregar à polícia a administração da justiça. Uma Justiça "fast food", que queime etapas e ofereça resultados imediatos, mão pesada e prisões cheias. Deixariam as quintas da fonte de ser fonte de problemas? Nem ele acredita.