Forma e substância
O conteúdo do "acordo" alcançado com a Grécia é absolutamente irrelevante! Trata-se de um exercício de retórica contabilística, de uma redação orientada para o único intuito de salvar a honra dos alemães e de injuriar os gregos. Nenhum dos seus subscritores acredita no que lá se escreveu e todos afiançam que o irão cumprir embora saibam que é impossível fazê-lo. É tão ridículo, perverso e minucioso que até se pode virar contra os próprios "credores". A grande literatura alemã não merecia tamanha desfeita.
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Um acordo, qualquer acordo, era precisamente aquilo que o Governo português e os demais cordeiros do rebanho pastoreado pela sra. Merkel e o sr. Schäuble tentaram impedir ao longo de cinco meses de impasse negocial. Para eles, era crucial conseguir demonstrar a impossibilidade de qualquer entendimento com um Governo que ousara desafiar a hegemonia alemã a que vergonhosamente se tinham rendido, nem que para isso fosse preciso excluir da União o "estado-membro" que, de modo flagrante, é o permanente testemunho das consequências brutais e do completo fracasso das doutrinas que professam e que impuseram aos respetivos povos. Ainda que na "ordem de expulsão" Portugal figure logo a seguir à Grécia, o Governo do PSD/CDS não se inibiu de manifestar a sua docilidade e subserviência ao "superior interesse nacional" da Alemanha, nos termos exatos em que Merkel e Schäuble o pretendem interpretar, com idêntica determinação e vulgar hipocrisia.
Pensavam que bastava deixar que o tempo se escoasse e que a Grécia se visse impossibilitada de prestar os pagamentos devidos aos credores, até que o último euro desaparecesse do fundo dos cofres gregos. A expulsão da Grécia devia consumar-se "de facto", por asfixia lenta, para que os seus carrascos não tivessem de assumir os seus verdadeiros desígnios. Este plano macabro - que, não se esqueça, não se encontra definitivamente afastado! - foi contrariado pela iniciativa grega de realizar um referendo e pela expressiva manifestação de repúdio popular que mereceu.
Paradoxalmente, foi a vitória do "não" que tornou possível este "acordo". Uma vitória política que possibilitou um tipo de "manobra" recomendada pela doutrina militar, de Clausewitz a Mao-Tse-Tung, que se designa como "recuo estratégico". Foi a vitória do "não" que permitiu ao Governo grego fazer aprovar no Parlamento uma proposta onde admitia quase tudo o que anteriormente rejeitava e submete-la pontualmente em Bruxelas ao chamado "Eurogrupo" que, mal refeito da surpresa, se achou de súbito despido de todos os pretextos que até aí invocara. Os governos da França e da Itália, o presidente da Comissão, o Partido Socialista Europeu, o relatório escondido do FMI que abertamente confirmava a insustentabilidade da dívida, em consonância com os apelos incansáveis de Barack Obama, fizeram-se finalmente ouvir!
Ao fim de 17 horas de discussão, já na madrugada de segunda-feira, o "acordo" foi alcançado em Bruxelas e, para valer, carece ainda de ratificação por vários parlamentos nacionais, nos próximos dias. O "acordo" constitui uma precária garantia mas impediu para já a saída imediata da Grécia - imediato prelúdio da desagregação da moeda única e princípio do fim do projeto europeu. Por outro lado, enquanto os economistas se afadigam nos inverosímeis cálculos com que alguns nos pretendiam convencer de que não havia alternativa à mais dura austeridade, a política está de regresso ao espaço público e descobre-se que há outras possibilidades a explorar, outras realidades para além do "deve" e do "haver". E percebeu-se também que o "unanimismo" europeu, afinal, não era mais que uma enganadora aparência. Embora frágil e incerta, a esperança volta a iluminar o futuro da Europa.