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Ao longo dos anos, os enfermeiros têm vindo a reivindicar, constantemente, reforços no SNS que melhorem a qualidade de cuidados a que a população tem direito. Mas mesmo após um acontecimento tão disruptivo como a pandemia de Covid-19, os profissionais de saúde continuam a aguardar as reformas de que o SNS precisa.
Urge alterar a atual carreira (dita) especial de enfermagem, que mantém várias assimetrias devido a vínculos contratuais díspares e em que a meritocracia fica em segundo (ou último) plano. O atual modelo não valoriza dignamente o trabalho especializado e sucessivos governos mantêm uma postura de taciturnidade em relação à penosidade e risco desta profissão. Convém lembrar que os profissionais são o Goodwill de todo o SNS.
Em sentido inverso, os enfermeiros continuam a desenvolver as suas aptidões, conhecimentos e capacidades. Não admira que a sua performance seja tão reconhecida e valorizada internacionalmente. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento de competências e a cada vez maior especialização dos cuidados de saúde é uma garantia de qualidade para todos os que vivem em Portugal.
Mas se a garantia dos cuidados de saúde deve ser assegurada pelo Estado português, já a formação dos enfermeiros é suportada, na íntegra quanto aos valores cobrados, pelos mesmos, contribuindo para alimentar um negócio milionário.
O curso base numa instituição pública terá um custo à volta dos 3000 euros, mas se o estudante procurar uma instituição particular, aí a licenciatura em enfermagem ronda os 20.000 euros.
Além do curso na instituição de ensino, os alunos têm que frequentar períodos de aprendizagem clínica, em contexto de trabalho real, para validarem conhecimentos e desenvolverem competências práticas que lhes permitam atingir os objetivos propostos.
Para isso as escolas procuram ambientes clínicos que aceitem estes futuros enfermeiros, o que acarreta custos também para as escolas privadas. Os estudantes são acolhidos e monitorizados por enfermeiros para se desenvolverem e validarem conhecimentos e aptidões. Mas, aqui chegados, verificamos que não existe compensação remuneratória para quem, nos locais de trabalho, valida e forma os novos enfermeiros.
Apesar das propinas cobradas pelas escolas e dos custos pagos às instituições de saúde que acolhem os alunos, o responsável pela formação prática de futuros pares em momento algum vê o seu desempenho recompensado.
Se isto já é mau, torna-se pior considerando que, na grande maioria dos casos, esta tarefa é exercida durante o período normal de trabalho, representando um enorme acréscimo de esforço para estes enfermeiros.
Uma história lamentável, que se torna numa infeliz saga quando observamos o ensino pós-graduado e pós-especializado dos enfermeiros. Nas escolas públicas, os emolumentos para frequentar um curso de especialização são da ordem dos 3000 euros, que passam a 3800 euros nos privados.
Estas formações padecem da mesma injustiça. Os formandos precisam de testar conhecimentos e adquirir/melhorar competências em ambiente clínico. O ciclo repete-se: o interessado paga a propina, a escola suporta o custo do estágio e depois surge um enfermeiro de reconhecida capacidade e especialização para ensinar e supervisionar o formando.
Um processo que, mais uma vez, não traduz nenhuma remuneração acrescida para quem, de facto, "especializa"/ensina e supervisiona o formando. Acresce que não são raros os casos em que as instituições que acolhem estes enfermeiros para formação especializada contam com o seu trabalho para, inclusive, colmatar a carência de recursos humanos.
Olhando para os números de enfermeiros formados anualmente, e tendo por base 4 anos de licenciatura, constatamos valores superiores a 12 milhões de euros pagos pelos alunos apenas na fase de formação inicial.
Se considerarmos as várias pós-graduações, cursos de especialidade, entre outras formações, facilmente concluímos que a grandeza dos números ascende a dezenas de milhões de euros e que nunca nada chega aos bolsos dos enfermeiros imprescindíveis nestes processos formativos.
Uma triste saga que reforça os contornos de injustiça e desigualdade quando olhamos, por exemplo, para os muitos e variados contratos-programa dos hospitais do SNS.
Mais exemplos podem ser apontados mas, de forma breve, analisando as linhas de produção contratadas nos contratos-programa dos hospitais do SNS, constatamos a existência de milhões de euros programados para financiamento autónomo de formação de médicos internos de primeiro e segundo ano do internato médico.
Não contestando a existência de verbas para a formação de médicos sem que estes necessitem de a pagar do seu bolso, o que se exige é um tratamento igual para os enfermeiros!
Investir nos enfermeiros no sentido da especialização em cada área de intervenção é garantir qualidade dos cuidados de saúde à população. Por isso é urgente mudar o paradigma da formação (ou negócio) dos enfermeiros em Portugal.
É necessário que um modelo de desenvolvimento profissional claro, conciso e estratégico seja assumido pelas instituições tendo em conta os seus objetivos, necessidades e planeamento futuros, que considere a necessidade de especialização dos seus profissionais e que sejam disponibilizados recursos para esse efeito.
Continuamos a assistir a políticas que desmotivam, desencorajam e estimulam o abandono da profissão por parte de sucessivos intervenientes que, caso não sejam erradicadas e substituídas urgentemente, podem trazer consequências irreparáveis para a perceção atual e expectativas da população sobre o SNS.
* Coordenador da região Norte do Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (Sindepor)