Fortalecer a democracia? Pensemos o SNS
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A crescente atenção em torno dos incentivos aos profissionais no Serviço Nacional de Saúde (SNS) tornou evidente uma urgência estrutural: repensar o modo como financiamos os cuidados de saúde em Portugal. O debate não pode ser meramente guiado pela espuma dos dias, como se viu nos recentes casos relacionados com a produção cirúrgica adicional no SNS - em particular com o SIGIC.
O SIGIC - Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia - foi criado para responder à pressão das listas de espera, prevê a remuneração adicional da produção cirúrgica fora do horário normal das equipas. Ao longo dos anos, contribuiu para acelerar o acesso a cuidados cirúrgicos, com bons resultados como demonstrado no programa OncoSTOP (programa de regularização para cirurgia oncológica). No entanto, o caso do Hospital de Santa Maria, no serviço de dermatologia, revelou, alegadamente, fragilidades significativas.
Como atuar? Uma primeira nota é que estas situações não devem ser generalizadas. Mas também não podem ser ignoradas. Por isso, é preciso financiar melhor a produção em horário regular. E mais. A produtividade e a complexidade clínica das cirurgias em horário regular devem ser, no mínimo, equivalentes às dos períodos suplementares. E quem inscreve o doente em cirurgia não o deve operar. Mas estas são apenas correções necessárias num sistema que está desatualizado.
A resposta verdadeiramente estrutural, contudo, pode ser encontrada no modelo de unidades locais de saúde (ULS), que agora dominam a arquitetura do SNS: entidades que integram cuidados primários e hospitalares sob uma única gestão, em articulação com estruturas locais.
As ULS constituem uma oportunidade porque impelem a um novo modelo de financiamento, que pode ir além da produção adicional, para premiar o que é realmente transformador: projetos multidisciplinares que reduzam a morbimortalidade das populações, fomentem a literacia, a promoção de saúde e a inovação nas ULS, cruzando áreas como a ciência dos dados e a inteligência artificial. Tudo isto é mensurável. Tudo isto é financiável.
O essencial é termos uma visão clara de futuro. Um SNS descentralizado, acessível, focado em resultados, e com financiamento orientado para esses ganhos em saúde. Num tempo em que as tensões populistas minam os alicerces das democracias liberais, defender a respeitabilidade do SNS é defender a própria existência da democracia que o criou.