Enquanto não assenta a poeira sobre o que Passos Coelho quer dizer com refundação do Estado (estou a admitir que sabe!), o dia--a-dia talvez nos ajude a perceber que, para as mesmas funções, a forma de operação releva. A pressão sobre a reforma das primeiras será tanto maior quanto menos bem geridas forem as segundas.
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Na televisão vejo um homem com uma pilha de notificações das Finanças. Terá sido aprovado um loteamento e cada proprietário recebe uma informação sobre todos os outros envolvidos. Fazem as contas. Como há mais de cem, serão emitidas para cima de 10 mil cartas. Com aviso de recepção, o custo rondará os 30 mil euros. Confrontados com o caso, os serviços das Finanças confirmaram que a operação estava correcta: a lei prevê a notificação de todos os interessados. Assunto encerrado. Encerrado? O impresso é padronizado, igual ao que hoje todos recebemos por tudo e por nada. É simples mas nem sempre barato. A tecnologia ao serviço do desperdício. Houvesse gestão no serviço em causa, ou simples profissionalismo, e talvez alguém se lembrasse de escrever um ofício, como antigamente se fazia, em que se arrolariam todos os restantes lotes, numa notificação única. Dava um bocadinho mais de trabalho que pouparia uns milhares de euros. Multiplique este episódio, ainda que em menor escala, pelo país e chegará a uns milhões. Em causa as funções do Estado? Não. Só operações mal geridas, desperdício, desinteresse.
Neste caso, o custo é evidente. Pior, muito pior, sucede quando o mesmo é remetido para o cidadão anónimo. Dou um exemplo, passado comigo. Aquando da revalidação da carta de condução, detectou-se que havia um erro no código postal da minha morada - uma letra a mais, um P, a preceder os algarismos. Sem esse problema corrigido, nada feito. Indicaram-me os serviços competentes, aonde me dirigi. Lá chegado, percebi que não era caso único. Em 5 minutos o assunto estava resolvido. Com simpatia. Cinco minutos, a que se somaram a meia hora para lá chegar, mais o regresso e o custo do estacionamento. Quantos terão tido o mesmo problema? Quantas horas de trabalho se perderam? Uma vez identificado o erro, se houvesse diligência e consideração pelo cidadão, não poderia alguém ter sugerido que se fosse ao sistema e se limpasse o tal P que estava a encalacrar tudo? Um pequeno exemplo de custos de contexto que não decorre da lei, da função mas, tão-só, da operação. E que contribui para infernizar a vida do cidadão.
Todos os meios de Comunicação Social têm, nos últimos dias, noticiado as tentativas de diversos serviços de Saúde para cobrar taxas moderadoras em atraso. Nalguns casos, os prazos já terão sido ultrapassados, estando prescritos. Primeira pergunta: há alguém que vá ser responsabilizado por este erro que lesa os cofres do Estado? Depois a constatação: chegamos a um ponto em que alguém que não pagou o que devia ter pago tem o descaramento de vir protestar por lhe estarem a tentar cobrar o que só a incúria terá permitido que não pagasse. A que estado chegou o jornalismo para que lhe tenham dado cobertura sem lhe terem feito a pergunta óbvia: e por que não pagou? Num dos casos noticiados, um hospital constatou que, entre os prevaricadores, estavam alguns dos seus funcionários. E resolveu descontar a dívida nos ordenados. Impossível. Percebe-se que haja direitos a salvaguardar. E que tal não esquecer o de os que cumprem não terem de continuar a pagar pelos relapsos? Quando a dívida é inequívoca, é preciso encontrar formas expeditas e menos onerosas de cobrança. Não é indiferente que se gastem dois euros para recuperar três quando, de outro modo, se podiam gastar só 30 cêntimos. Num destes dias, Mota Soares foi ridicularizado por anunciar um aumento nas pensões de 30 cêntimos por dia. Eram tantos os abrangidos que, ainda assim, a despesa aumentava mais de 100 milhões de euros ao ano. Acontece o mesmo, do lado das receitas, com a cobrança das pequenas dívidas. São os grandes números a falar.
Os custos de má gestão não podem inquinar a discussão das funções do Estado.
O autor escreve segundo a antiga ortografia