Passou um ano e o verão terminou. Amparado por uma maioria absoluta na Assembleia da República, o Governo continua a exibir uma flagrante displicência e uma inclinação fatal para o improviso e o desastre. No final de agosto, imaginávamos que o anúncio público do relatório de avaliação das muitas centenas de fundações - que alegadamente constituíam um "tumor maligno" nas nossas desfalcadas finanças púbicas! -, perante o coro imenso de protestos que desencadeou e com todos os erros denunciados e parcialmente admitidos, teria sido o último folhetim de mais esta cruzada governativa. Além disto, o exercício de avaliação tinha ficado muito aquém das expectativas, designadamente, quanto à dimensão do "monstro" e à magnitude das poupanças prometidas. Recorde-se que no incompreensível "ranking" dos autores do relatório, à "Fundação Calouste Gulbenkian" tinha sido definitivamente atribuído, em matéria de "relevância", um modesto 57.oº lugar - pior do que a "relevância" reconhecida por esse mesmo relatório à "Fundação Social-Democrata da Madeira" que, como se sabe, enfrenta atualmente uma investigação criminal.
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Engano amargo. Apesar do escândalo, a tragédia virou farsa e o folhetim continua, agora, no "Diário da República" de 25 de setembro que publica a decisão de extinguir quatro fundações, duas das quais se localizam no Douro, sendo uma delas criação deste Governo, há cerca de um ano - a "Fundação Côa Parque". Que suprime qualquer subsídio a 14 fundações - onde se inclui a Casa de Mateus. E ainda determina o corte de 30% dos apoios a mais meia centena de fundações tão "irrelevantes" como a Casa da Música e a Casa de Serralves, no Porto, ArpadSzenes-Vieira da Silva e Júlio Pomar, em Lisboa, ou a Fundação Eça de Queirós, em Baião. Em Chaves, a Fundação Nadir Afonso perde o estatuto de utilidade pública - sabe-se lá porquê! - estatuto que todavia é mantido para inúmeras fundações privadas, sem que se perceba qual seja a relação entre as decisões agora tomadas e os critérios explicitados no relatório de avaliação.
Neste contexto, é digno do maior espanto o anúncio da extinção da fundação que tutela o museu e as gravuras rupestres do parque arqueológico do Côa, classificado como património mundial pela UNESCO, apenas um ano depois de ter sido criada pelo mesmo Governo que inaugurou o edifício do Museu e nomeou os atuais titulares dos seus órgãos. Aliás, a "Fundação Côa Parque" nem sequer devia ter sido incluída nesta avaliação porque não se inscreve no horizonte temporal prescrito. Contudo, não só foi indevidamente avaliada como também é agora extinta, o que vem prolongar de forma inadmissível um longo período de incerteza e de constrangimentos financeiros suportados pelos seus técnicos e dirigentes que generosamente têm conseguido compensar a inevitável turbulência de um processo de transição que assim parece ameaçar eternizar-se.
Havia a consciência clara de que, por negligência ou clientelismo, se fora facilitando ao longo dos tempos a multiplicação de fundações, desenhadas segundo diversos modelos e sujeitas a distintos regimes, e que os atraentes benefícios e isenções, uma vez concedidos, se mantinham indefinidamente sem o adequado esforço de acompanhamento e fiscalização pública do seu funcionamento e das suas atividades. Todavia, em vez de meter ombros a essa tarefa, proceder a uma análise caso a caso, ponderar o interesse público envolvido e o esforço financeiro reclamado, para fundamentar as decisões e racionalizar os encargos, em vez disso, e de um só golpe, foram colocados em grave risco a cultura e o património cultural que, justamente, cabe ao Estado proteger e valorizar, desconhecendo-se as alternativas que, esperemos, ainda possam vir a amenizar a catástrofe anunciada.