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Três notícias. Em Braga, um casal ainda jovem, sem emprego e sem dinheiro para a renda, entregou o filho aos cuidados dos padrinhos e abriga-se debaixo de uma ponte; enquanto isso, um sindicato desmente a ministra da Justiça e garante que se manterá a regalia (não sei se terão dito "direito") de viajarem sem pagar nos transportes públicos; ainda por cá, o Tribunal de Contas (TC) divulgou um estudo dos custos do ensino básico e secundário.
Três notícias, entre muitas outras, que nos interrogam sobre o caminho que queremos, ou podemos, seguir. A banalização de situações como a primeira tem o perigo da indiferença, de serem consideradas quase normais. Confrontados com as nossas próprias dificuldades, começamos a tolerar praticamente tudo, mesmo quando estão em causa os limites da dignidade humana. Será aceitável que o Estado se permita lavar as mãos de casos como o referido? Que a sociedade civil se mobilize para fornecer um apoio, por mínimo que seja, é prova que há valores enraizados. Dramático é que os mesmos comecem a não ser evidentes, a rarear cada vez mais, nas políticas públicas, mesmo nas que têm a sua origem no Ministério dito da solidariedade. É certo que os recursos escasseiam, e até admito que haja casos de oportunismo. Estes não podem, porém, ser pretexto para a desistência. O justo não pode pagar pelo pecador mesmo que os serviços públicos sejam incapazes de identificar quem merece, ou não, o apoio. Por mais redefinições que se façam do papel do Estado, a salvaguarda da dignidade humana há-de estar entre as prioridades absolutas, inamovíveis e inegociáveis, limiar mínimo do que distingue civilização de barbárie. Se os nossos impostos não servem ao menos para isto, então para que é que servem?
Servem, vamos sabendo, para financiar, por exemplo, o transporte de uns milhares de funcionários, e respectivos familiares, de serviços e ministérios os mais diversos. Dir-se-á que é um complemento remuneratório que permite vencimentos mais baixos. Os invejosos e mais demagogos invocarão que tal acontece, igualmente, com os políticos e que estes não são mais do que os outros. Concedo que há mordomias sem justificação em muitos cargos públicos. Admito, também, a existência de abusos, nomeadamente na utilização para fins pessoais de meios colocados à disposição para fins públicos. Mas não cedo ao populismo de tratar tudo pela mesma bitola. Há funções de Estado e de representação que requerem dignidade e respeito. Em nome da transparência, escrutinem-se as benesses complementares de que beneficiam os lugares de topo da hierarquia política e da administração pública, central e local. Em nome, ainda, dessa transparência, da necessidade de sabermos para onde vão os nossos impostos, acabe-se com todas as outras mordomias (de que os transportes gratuitos são apenas um exemplo) que enxameiam na estrutura do Estado. Nem que tal signifique uma revisão dos vencimentos. A curto prazo, pouparíamos dinheiro sem que fosse preciso refundar o papel do Estado. É preciso é querer afrontar interesses instalados.
Como não é preciso refundar o papel do Estado para tirar do estudo do TC mais consequências do que a quase anedótica recomendação de se dever ponderar a continuidade dos contratos com as instituições do ensino particular e cooperativo. Bem sei que os doutos juízes sugerem a necessidade de o Ministério passar a ter um sistema de informação adequado. E as disparidades gritantes, no custo por aluno, entre estabelecimentos de ensino que terão uma estrutura semelhante não justificariam uma recomendação para que se procurasse apurar as razões? Ou, no mínimo, para que se identificassem (e, já agora, premiassem) as melhores práticas que pudessem ser usadas como referência? O TC tem um papel fundamental no melhor uso dos recursos públicos. Conclusões como a deste estudo sabem a pouco. Será preciso refundá-lo?
Quem paga impostos tem legitimidade para exigir que sejam usados com critério, para os fins próprios. Este sim, um direito "adquirido". Começar por mudar as práticas seria a mais drástica das reformas do Estado.