Todos exigimos um genuíno Estado de direito, pautado pela lisura legal, garantia de paridade e segurança. No entanto, a todo o tempo, encontramos no coletivo a reclamação de espaços de certa anarquia, quero dizer, no sentido pejorativo.
Corpo do artigo
Não faltam exemplos de territórios de permissividade onde tudo quanto se convencionou como essencial à justiça se suspende para valerem os mais torpes intentos.
A Internet é o exemplo acabado da suspensão da legalidade e da decência. No universo virtual há um perigoso pacto de ilegalidade, onde a impunidade se pressupõe em relação a tanta coisa, desde logo, como acontece com a profusão da pornografia sem capacidade ou interesse no controlo da idade do consumidor, ou com o insulto e a calúnia, ou ainda com o abate dos direitos de autor. Mas o futebol, ou muito do desporto, não fica longe no exercício da exceção à decência e ao direito. O desporto, guerra dos que vivem em regimes de paz, é afinal o vazadouro do ímpeto agressivo dos piores espíritos.
Lembro do grito de um amigo, no fim de uma viagem de avião, ao ligar a rádio e saber que sua equipa havia perdido. Um grito descontrolado de fúria que, num instante, quando íamos no autocarro para o terminal das chegadas, o tirou da realidade. Era claro que aquele cordial, sóbrio, profissional encontrara no futebol um dispositivo de submissão. Não podia nada contra aquela emoção. Era como primário, uma mente subjugada à paixão por um clube. Dissemos-lhe adeus a medo, como quem se afasta de um enfermo e lhe deseja as melhoras.
Nunca entendi muito bem porque o desporto haverá de ser desculpado no cumprimento das regras mais elementares. Quando há jogo grande no estádio do Rio Ave, por exemplo, não há multas para o estacionamento em todas as zonas proibidas. Mesmo trancando garagens e mesmo na rotunda. Vale tudo. Nos dias dos jogos grandes parece inevitável que a cidade se veja a braços com a reunião de um exército perigoso. Entre tantos que chegam por alegria, muitos chegam a distribuir medo, a intimidar.
Não me surpreende o caso de Marega. O que me surpreende sempre é a tentativa de o culparem por ter sido ofendido. Nenhuma provocação pode resultar em racismo, coisa que radica na mais torpe das ideias. O racismo é uma prepotência dos muito burros. Precisa ser exterminado mesmo em territórios onde vigora a liberdade impune de cada um. Não por obstinado legalismo, mas por expressão de inteligência, decência mínima. Por diminuição do nojo na sociedade.
Se a fúria ou a folia com o futebol é descontrolada, sugiro outra disciplina. Não vale o grotesco em que podem cair. Nada vale.
Escritor