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Tenho saudades das crónicas de Lobo Antunes. Muitas eram a mesma coisa, mas a mesma coisa de formas muito diferentes, um jeito tortuoso de contar que encantava mesmo quem sabia de cor o feitiço.
Eram crónicas que eram armadilhas, a gente caía sempre no alçapão que ele preparava para nós, e gostávamos que outros caíssem também. Líamo-las de pais para filhos e destes para amigos. Eu sei de quem se fascinasse pela voz encantatória de Lobo Antunes, que dizia anda para ao pé de mim, que eu te quero longe.
Porque eram só dele, fatalmente queríamos que fossem nossas. Mais do que isso, a voz pedia proximidade mas desconfiava de quem se aproximasse. As crónicas estavam-se perfeitamente a lixar para os leitores, desde que os leitores não se estivessem perfeitamente a lixar para elas.
Quando eu era pequeno, a minha mãe costumava perguntar se eu já tinha lido esta e aquela e a outra. A minha mãe gostava tanto desta, daquela e da outra, que um dia, aos onze anos, decidi imitar Lobo Antunes. Escrevi uma crónica sobre a dona Rosa da infantil, que me enfiava garfadas de salada-russa pela goela abaixo. Dizia ela: tu, menino, fazes o que eu te digo; e eu, que remédio, fazia o que ela dizia. Nunca uma crónica comeu tanta salada-russa.
A minha mãe gostou. Pelo menos quanto ao propósito, era tal qual Lobo Antunes todas as semanas na revista. Tinha personagens mais dele do que minhas, a intuição de uma família lá ao longe e sobretudo a sensação de que algo se perdera. De que algo nos fora roubado, se não a mim, certamente à voz que inspirava a crónica. De resto, era fácil papaguear a escrita de outros, isso até a inteligência artificial faz - e, que eu saiba, não tem ombros e pescoço onde assentar uma cabeça.
Sei que Lobo Antunes sempre disse em público que as crónicas são pequenas coisas, coisas de nada face aos romances, mas já vai em não sei quantos volumes publicados de crónicas. Se as quisesse mortas de pequenez, não lhes teria dado vida.
Mesmo quando as leio nos últimos volumes de antologia, continuo a ter saudades das quintas-feiras na “Visão”. Gostar do que alguém escreve também é gostar um pouco de nós mesmos, como se um dia tivéssemos imitado a nossa vida na escrita de Lobo Antunes e afinal, claro que sim, gostássemos que a dona Rosa voltasse a dar-nos garfadas absurdas de salada-russa.
O autor escreve segundo a antiga ortografia