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Quando Cavaco Silva verberou o meio país que nele não votou, ufanando-se de que tinha conseguido a vitória «da honra sobre a infâmia» e «da verdade sobre a calúnia», não fez apenas um discurso rancoroso, como muito bem o classificou Mário Soares: plantou um bolor de demagogia de onde espera retirar a penicilina que o deixe imune à desconfiança e descrédito que gerou sobre si próprio. Nada de mais errado: se uma eleição constituísse um veredicto popular irrevogável sobre a honestidade de alguém, Isaltino Morais, Valentim Loureiro e Silvio Berlusconi estariam por estas horas incensados no panteão da intocável santidade.
O facto de ter sido eleito não apaga as dúvidas e certezas que se avolumaram a seu respeito. Depois de não se saber se foi ou não alvo de um favorecimento nebuloso num investimento muitíssimo lucrativo na SLN, ficou a enorme dúvida sobre a transparência da permuta de uma vivenda por outra três vezes maior. Ignora-se se o outro permutante não terá querido contentar-se - por razões que lá saberá... - com gato por coelha. A Câmara Municipal local é que ficou a ver voar a sisa - numa operação com contornos muito semelhantes à daquela em que se envolveu um ministro do cavaquismo, Miguel Cadilhe de sua graça. E ficou a certeza de que eleitores seus, presumivelmente seguros, expressaram a disposição de se abster, por força das explicações não dadas.
É com este capital rançoso que Cavaco Silva se propõe inaugurar uma nova magistratura, esta «activa», no seu dizer. Outro engano. A magistratura de um Presidente é a sua influência, a força da sua palavra, a penetração do seu conselho nos agentes políticos por via do eco na opinião pública. Mas não estará ele já desacreditado antes de começar o segundo mandato? Pode dissolver o Parlamento, isso pode, mas quantas vezes? A bomba atómica não é estalinho de carnaval que possa lançar-se a toda a hora.
«Desafiou» os jornalistas a revelarem «os nomes daqueles que estão por detrás da campanha suja» que diz ter-lhe sido movida. Não precisava. Os jornalistas divulgarão de bom grado se souberem de alguma coisa. Como o fizeram quando denunciaram a Presidência por detrás da sujíssima conspirata das escutas. E, enquanto investigam isso, também escrutinarão outras coisas, a ver se fazem saltar mais coelhas da lura.
Mas nada disto lhe importa: ele está 'lá', é o que lhe interessa - e julga-se a salvo. Replicará com silêncio caturra e olhos em baixo a todas as dúvidas e reparos. Mas também não será para ele que estaremos a falar.
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