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Não há, hoje, manifestação, por mais pífia que seja, que não acabe no insulto aos governantes. "Gatunos" parece ser o menos ofensivo. Será? Consulta-se o dicionário e lá vem: gatuno - que ou aquele que colhe lucros ilegitimamente, geralmente prejudicando alguém. Gatunos os governantes?
Numa situação de retracção económica, a tributação acrescida de rendimentos e património torna, em média, os contribuintes mais pobres. Prejudica-os, no imediato. Não admira que não agrade a ninguém e que estimule o protesto. "É um roubo!", sempre se ouviu dizer. Sem uma conotação pessoal - era dinheiro extorquido para alimentar esse saco sem fundo do Estado. O que agora se insinua é algo mais concreto. Há quem beneficie, ilegitimamente, dessa colecta.
Quem toma essas decisões são políticos, mesmo que só de circunstância, como é o caso de Vítor Gaspar. Em princípio, quando decidem, fazem-no de acordo com uma ideia de promoção do bem-estar social, por mais discutível que seja. Em democracia, sempre se admitiu uma perversão: a gestão do ciclo eleitoral, ou seja, decidir de modo a aumentar a probabilidade de ser reconduzido. Um defeito tolerável, apesar de tudo, já que, como dizia Churchill, estamos perante o pior dos regimes, com excepção de todos os outros. Se percorrermos os livros da história, não é provável que se encontrem muitos casos em que alguém tenha sido eleito ou, menos ainda, reeleito a prometer aumentos de impostos. Numa lógica maquiavélica, poderíamos estar perante a ideia de fazer o mal todo de uma vez e cedo no ciclo eleitoral, de modo a poder fazer o bem (na perspectiva do eleitor) perto da data das eleições. Em todo o caso, continuaria a faltar o elemento crucial para estarmos perante uma ladroagem: o lucro próprio e ilegítimo.
Se não fosse grave, seria caricato que estas acusações venham de forças políticas que fazem do aparelho de Estado o seu templo sagrado. Vamos a contas. Em 2011, o total de receitas do IRS, mesmo depois de todos os aumentos, pagou o serviço nacional de saúde (SNS) e pouco sobrou. Pode argumentar-se, com legitimidade, que a política do Governo ignora o incentivo ao crescimento e que este processo de aumento sucessivo de impostos cria um ciclo vicioso recessivo do qual só sairemos por um choque externo. Pode argumentar-se que se trata de um assalto (Marques Mendes dixit) ou que vai estimular a fuga aos impostos na classe média, pondo em causa a base essencial da função redistributiva do Estado. E muito mais haveria a dizer. A verdade é que o Estado continua a gerar um défice insuportável. Esse foi um dos maiores falhanços do actual Governo, pelo qual todos somos agora convocados a pagar. Ora, os que orquestram os coros da gatunagem são exactamente os mesmos que se opõem a qualquer reestruturação, por pequena que seja, daqueles serviços. A isso chama-se desonestidade intelectual.
Desvalorizar estes insultos é de um relativismo perigoso. Não estamos perante expressões espontâneas de indignação mas de manifestações organizadas com um fim. Que elas medrem é responsabilidade da inépcia fundamentalista deste Governo, mas também de um sistema político ancorado em cliques partidárias opacas, a precisarem de uma barrela. Há casos de corrupção ou de favorecimento? Há suspeitas de enriquecimento ilícito? Sem esquecer que, apesar de tudo, os políticos têm de fazer declarações públicas de rendimento, investigue-se. Se as dúvidas tiverem fundamento, avance-se para os tribunais. Onde não podem ter lugar falsos "cavaleiros brancos" da defesa da res publica que arrastam os casos, e gerem as fugas de informação, em função das conveniências do seu protagonismo. Também por isso a reforma da Justiça é essencial à sustentação do sistema democrático. Um bem em si e não por ser útil a este ou aquele partido. Algo que muitos ainda não compreenderam, como ficou patente nas declarações da ministra da Justiça. Esses jogos políticos mesquinhos permitem que pululem as insinuações, a calúnia e os equívocos que minam a democracia. E é a democracia, cada vez mais, que está em causa.