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Em Portugal "os outros" são o problema. Nós somos apenas vítimas. O primeiro-ministro, por exemplo, acha que foi a conjuntura e a crise internacional que nos tramaram. Muitos portugueses acham que foi o PM quem os tramou. Há quem generalize e pense que os políticos são o problema. Até políticos acham o mesmo mas, adivinhou!, são "os outros" políticos que são o problema. E podemos prosseguir. Para os empresários, a causa disto tudo, se não são os trabalhadores é a legislação laboral ou os sindicatos. Estes pagam-lhes na mesma moeda e acusam-nos de, em concertação com os políticos, darem cabo do país. E assim sucessivamente: Na verdade não somos nós que guiamos desalmadamente, batemos e fugimos, estacionamos em qualquer lado, sem respeitar nada nem ninguém. Como também não somos nós que deitamos o lixo para o chão ou que com ele infestamos matas e pinhais. São os outros! Nós não somos os que olhamos, embevecidos, o nosso cãozinho a defecar na relva onde os filhos do vizinho virão a brincar (claro: a situação está tão má que só um doido tem filhos!). Nós, coitados, somos os que trabalhamos exemplarmente, como doidos, pagamos os impostos, trabalhamos toda a vida para ter uma pensão de miséria. Nós não temos sorte. Nós seríamos capazes de assumir qualquer cargo, desde gerir a maior empresa a ser primeiro-ministro, ou outra coisa qualquer. Assim no-lo dessem.
Por Portugal já tudo fizemos. Não temos responsabilidade nesta situação. Não nos peçam mais nada. É tempo de serem os outros a fazer. Ao fim e ao cabo, são eles a fonte dos problemas.
Num país assim, ainda há excepções.
Como o Banco Alimentar contra a Fome. Juntam voluntários aos milhares. "Tansos! Eles não vêem que só tem fome quem não quer trabalhar?"
Ou o conselho de administração do Hospital S. João que, antes mesmo da ministra decretar cortes e restrições, se empenharam em ver o que, e como, podiam poupar. Como deve ser, de baixo para cima, sem pôr em causa a qualidade. "Deve ser para salvarem o tacho!".
Ou os habitantes de Sever, em Moimenta da Beira que se revezaram na construção da estrada de que a povoação carecia, sem nada pedirem. "Papalvos! Vê-se bem que não tinham nada para fazer. Pagamos impostos para quê?".
Ou os milhares que recolheram tampas de plástico das garrafas e as entregaram à Lipor que, por sua vez, efectuou donativos de centenas de milhares de euros a instituições de apoio a crianças. "Levados numa jogada publicitária, vê-se logo!".
Bem vistas as coisas, em Portugal o problema são "os nós" que nunca se vêem ou percebem como outros. Os "nós" sempre, e apenas, vítimas. Sem responsabilidades em nada. Incapazes de generosidade, no pensamento ou na acção.