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Desde o fim da Guerra do Vietname, é a maior vaga de refugiados que, em desespero, se atrevem a cruzar o Índico em busca de proteção noutros países. Tal como no Mediterrâneo, muitos naufragaram e perderam a vida a bordo das embarcações precárias dos "passadores" clandestinos. Outros, mais de 300 mil, atravessaram a fronteira terrestre e foram internados em campos de refugiados num país vizinho - o Bangladesh - onde foram acolhidos nas condições mais dramáticas. Homens e mulheres, velhos e crianças, fogem de Myanmar - outrora conhecida por Birmânia - uma antiga colónia inglesa que se tornou independente em 1948 e que, desde o golpe de Estado de 1962, vive sob a tutela sangrenta dos militares que adotaram o budismo, professado pela maioria da população, como "religião de Estado". São cerca de um milhão de pessoas os membros desta minoria muçulmana, designados por rohingya.
Conforme esclarece o excelente trabalho jornalístico publicado pelo "Le Monde" (http://www.lemonde.fr/asie-pacifique/article/2017/09/13/rohingya-la-dirigeante-birmane-aung-san-suu-kyi-annule-un-deplacement-a-l-onu_5184782_3216.html), os rohingya foram transformados em apátridas pela ditadura militar. Em 1982, com a aprovação de uma nova lei da nacionalidade, os militares que governam Myanmar retiraram-lhes a cidadania com o pretexto de que não integravam nenhuma das "raças nacionais", classificação reservada apenas aos que pudessem comprovar que já residiam no país antes da chegada dos primeiros colonos britânicos, ou seja, antes de 1823! Aos membros da mais importante minoria muçulmana residente em Myanmar, é negado o acesso a bens alimentares, aos cuidados de saúde, à educação. Não podem trabalhar fora das suas aldeias e para viajar ou até para casar, precisam de uma autorização oficial. Arrasaram as suas aldeias, incendiaram as casas e mesquitas centenárias, impuseram-lhes controlos de natalidade.
Cedendo à forte pressão internacional, a Junta Militar encetou o processo de transição democrática e a preparação das eleições de 2015. Num gesto de aparente concessão às exigências das Nações Unidas, a Junta admitiu a eventual regularização do estatuto da minoria muçulmana mas sujeitou o processo à condição prévia de que se declarassem "imigrantes ilegais"! O partido liderado por Aung Sam Suu Kyi obteve uma vitória eleitoral esmagadora mas aos rohingya não foi consentido o exercício do direito de voto e continuou a perseguição e o massacre. Esta semana, o Alto-Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Zeid Ra"ad Al Hussein, referindo-se à presente ofensiva militar lançada pelo Governo de Myanmar, qualificava as denúncias recebidas de agências das Nações Unidas e organizações não governamentais que prestam auxílio às ondas de refugiados que chegam à fronteira com o Bangladesh, como um "exemplo clássico de limpeza étnica".
Aung Sam Suu Kyi ganhou o Prémio Nobel da Paz em 1991 mas o prémio apenas lhe foi entregue 20 anos mais tarde, quando finalmente conseguiu obter autorização para o ir receber. Esteve presa durante 15 anos, às ordens da Junta. Foi impedida de assumir a presidência, por força de uma cláusula constitucional que a exclui por ser viúva de um estrangeiro. Por isso, apesar da sua enorme popularidade, teve de indicar outro membro do partido para a presidência, e tem conduzido a governação do país sob a tutela permanente dos militares. Tal como observa Rui Cardoso no "Expresso Curto" de ontem, a "Prémio Nobel da Paz Aung Sam Suu Kyi parece ter perante si um caminho cada vez mais estreito, entre as pressões dos generais com quem é forçada a coexistir, e a rápida erosão do seu capital ético e político". Suu Kyi prometeu uma declaração política sobre o genocídio que ocorre no país que governa, para a próxima semana. Ainda há esperança que não venha a confirmar a separação esquizofrénica que perversamente opõe aos princípios e aos valores universalmente reconhecidos pelos comuns mortais, a resignação pragmática às conveniências da política doméstica e a indiferença perante o sofrimento humano.
* DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL