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Três estórias. A primeira: um funcionário de um ministério tem de se deslocar de Lisboa ao Porto. Pede para lhe comprarem o bilhete de comboio. Não podem! Não estão autorizados a fazer despesa. Há uma alternativa: leva um carro. Parece que tem combustível que dá para ir e vir. As portagens? Tem Via Verde. Só se paga daqui a um mês e, ate lá, o Gaspar há-de levantar o congelamento. Fica mais caro? Que raio de observação! Quer ir ao Porto ou não? A segunda: um outro ministério tem activos para vender. Sabe que tem comprador. Para concretizar o negócio tem de efectuar um leilão público que requer um anúncio no "Diário da República" e num periódico. Não pode! Não está autorizado a fazer despesa. Aguarde até o Gaspar emitir novas instruções. Terceira: nos viveiros de trutas do Estado as rações estão em vias de se esgotar. Aí, não há problemas! Quando a comida se esgotar, comem-se umas às outras.
Como diriam os italianos "si non è vero, è ben trovato". Como me dizia o administrador de uma grande empresa: "este tipo de ordens só é possível de concretizar em empresas muito pequenas. Nem na minha me atreveria a fazer isso. Há tantas operações, tantas rotinas que nós não conseguimos prever! Nem me posso preocupar com elas. Há outras prioridades e outras maneiras de lidar com o assunto como, por exemplo, pedir às equipas que façam uma análise dos desperdícios em que incorrem. Falta gestão, sobra intendência".
Talvez a decisão não tenha consequências operacionais demasiado graves. Feitas as contas, é pouco provável que o impacto seja significativo: à boa maneira portuguesa, haverá sempre alguém que encontra uma maneira de contornar o condicionamento. No fundo, limitam-se a adiar o pagamento. Sobra a desconfiança que só acicata o antagonismo e o desinteresse dos envolvidos. Não é maneira de fazer as coisas. "Falta gestão, sobra intendência". Dizem-me que há outras razões, outros propósitos, tecnicalidades. Tanto pior. Se os há (ou havia), não seria útil que os governantes se habituassem a dar explicações aos funcionários do Estado e a quem os elegeu? Não seria mais produtivo? Não evitaria o ruído do "diz que disse"? Esta ideia do secretismo, de fazer de tudo um segredo de Estado que só os ungidos entendem, de que tudo se faz apenas e tão-só de cima para baixo, ou não se faz de todo, de que a partilha de informação é uma perda de tempo, é um perigoso equívoco que raia o antidemocrático.
Com a demora havida em avançar com a reforma do Estado, entretidos na ilusão de que conseguiam diminuir estruturalmente a despesa apenas pela via dos cortes, os actuais governantes vêem-se agora confrontados com a necessidade de produzir resultados a curto prazo. Com a (discutível) recusa do Tribunal Constitucional em conceder mais uma moratória ao método até aqui seguido, haverá a tentação de levar tudo a eito, destruindo mais do que reformando. Sem um entendimento mínimo com o PS, muitas dessas mudanças não terão perenidade. Por mais dogmática que seja a troika (ou os burocratas que para cá mandam), não parece missão impossível convencê-los de que uma reforma estrutural leva o seu tempo e requer condições (não foram eles que mandaram o Governo consensualizar?).
O critério orientador terá de ser o da mudança, racional e sustentada, na orientação e funcionamento do Estado. Uma lógica de serviço e não de emprego. Começando por estabelecer os níveis mínimos a assegurar e as funções prioritárias, aquelas que definem e salvaguardam as conquistas civilizacionais na saúde, na educação, na solidariedade social, na velhice, sem esquecer as funções inalienáveis do Estado. Questões em que há-de ser mais fácil alcançar o tão propalado consenso. Só então entrariam os números e as opções mais marcadamente político-partidárias. Não sei se os sindicatos quererão ser parte da solução. Não será fácil. A forma como a reforma tem sido anunciada, sempre e só centrada na poupança, nos custos, nos números não ajuda, ou melhor, facilita-lhes a reivindicação corporativa. Mais uma vez, falta em gestão o que sobra em intendência.