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O presidente da República decidiu falar ontem sobre um problema que anda a incomodar muitos socialistas (e talvez mesmo o Governo): a (in)governabilidade do país, causada, segundo os autores da tese, pelas "coligações negativas" com que a Oposição anda alegadamente a cercar a acção governamental. Disse Cavaco, durante uma visita ao Porto: "Não entro em jogos que possam aumentar a tensão no nosso país. Não entro em retóricas de dramatização". Disse e disse bem e no momento correcto: depois do orçamento rectificativo ter passado no Parlamento.
A histeria de alguns socialistas, entre eles um vice-líder da bancada parlamentar, tem um objectivo claro: trazer o chefe de Estado para a luta político-partidária, obrigando-o a tomar posições que obviamente o comprometeriam para o que resta da legislatura. Se Cavaco tivesse escorregado na casca da banana que delicadamente lhe colocaram à frente, causaria dois problemas: tomaria partido numa questão obviamente secundária em relação aos tremendos problemas que se colocam, hoje, a Portugal; e seria sempre "preso por ter cão e por o não ter": caso tomasse as dores dos socialistas, seria acusado de os ter ajudado na batalha com a Oposição; se criticasse o Governo, seria acusado de fazer parte das tenebrosas forças de bloqueio que por aí andam a congeminar sem descanso para tentar derrubar, o mais depressa possível, o engenheiro Sócrates.
O que se passa, afinal? Passa-se que o actual Governo tem naturais dificuldades de negociação com a Oposição, por vir de uma legislatura em que esse exercício não se impunha. E passa-se também que a Oposição (uma mais que outra) anda naturalmente com o freio nos dentes, depois de quatro anos e meio a reclamar inconsequemente este mundo e outro. Ou seja: não se passa nada que não seja normal num país democrático cujos eleitores optaram por ser governados por um Governo minoritário.
É por isso que a histeria de alguns socialistas teve ontem uma resposta à altura do presidente da República, que percebeu bem o modo como deveria passar o recado. Palavras dele: a situação política nacional "não é inédita": "Existiu um Governo sem apoio maioritário no tempo em que António Guterres foi primeiro-ministro, tal como eu também presidi a um governo minoritário. Sei bem o diálogo que tive de desenvolver. Algumas leis foram reprovadas e se calhar fiquei incomodado, mas mesmo um governo minoritário aprovou leis muito importantes". Por isso, falar de perigos para o normal funcionamento das instituições é, para o presidente da República, um "exagero total".
Pois é. Porque, de facto, as quezílias do código contributivo, a aprovação do orçamento rectificativo, o debate sobre o enriquecimento ilícito não chegam para nos pormos a clamar por um Governo de salvação nacional. E se aí chegarmos cumpre ao Executivo, em nome dos altos interesses do país, pedir a colaboração dos restantes partidos. Se a coisa falhar, aí sim, Cavaco Silva terá que actuar. Fazê-lo antes disso seria uma tontaria. E uma tontaria sem qualquer vantagem para o próprio, que muito naturalmente começa a fazer as contas que mais lhe interessam para se recandidatar à Presidência da República.
Numa palavra: o chefe de Estado falou quando devia falar para dizer o que devia dizer - ao Governo compete governar sem dramatizar. Uma evidência que parece atropelar o raciocínio tacticista de muita gente.