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O anúncio governamental é uma forma muito particular de ficção. Primeiro, porque tem a aparência de realidade, pretensão elementar da ficção; depois, ao contrário dos anúncios publicitários, embora haja a mesma vontade de vender, não vem revestido daquela exuberância que indica logo esturro. Está mais perto do leasing para férias no Algarve - um negócio que bem pode dar para o torto - do que a venda de uma faca eterna de cerâmica japonesa que descasca fruta sozinha, sem o auxílio da mão.
Acontece que a faca mágica vendida a desoras na têvê e o anúncio governamental têm ambos, demasiadas vezes, o mesmíssimo efeito: absolutamente nenhum. Mas a faca mágica nunca funciona, e o Governo lá vai mexendo, dizem-me. Concordo.
Porém, nos anúncios, os governos têm um funcionamento demasiadas vezes ficcional. Por favor, alguém faça a estatística da eficácia do anúncio: quantas notícias começadas com “Governo anuncia” vieram de facto a acontecer? Um terço, metade, um quinto? Qual será a taxa de execução, e o diferencial entre o anunciado e o cumprido? Esse seria um estudo para os sábios da estatística. Eu respondo quanto à eficácia das notícias “Governo anuncia”: enchem os olhos a 100%. Melhor: a 102,5%, já que números assim partidos, embora tão ficcionais como muitas dessas notícias, enchem ainda mais a vista.
Eis uma colheita dos últimos tempos:
“Governo anuncia 200 milhões em medidas para impulsionar o turismo no interior / Governo anuncia reforço de 800 milhões no SNS / Governo anuncia descida da taxa de insónia / Governo anuncia 25 milhões para edifícios da Justiça em Braga / Governo anuncia 12 milhões de euros para agricultura de precisão / Governo anuncia 12 euros para danos emocionais / Governo anuncia mais 10 milhões de euros para a Inovação Social / Governo anuncia contratação de 1000 técnicos superiores / Governo anuncia que não fará mais anúncios / Governo anuncia mais investimento nos portos de Leixões e de Viana do Castelo / Governo anuncia fim da crise habitacional”.
Destes cabeçalhos (excluindo os que eu inventei para efeito dramático), quantas pretensões propagandeadas terão realmente acontecido? Quantas provarão que - aqui e ali - talvez haja o belo encontro entre intenção e realidade, essa beleza a que se chama serviço público?
Nós, os publicamente servidos por quem tantas vezes anuncia, gostaríamos de saber. É que, quanto a ficção, em vez de lermos esse tipo de notícias, mais valia lermos um bom romance.
O autor escreve segundo a antiga ortografia