É intolerável ouvir dizer - como frequentemente se ouve - que "o Governo até queria mas a troika não deixa!". Como poderia um Governo legitimado pelo voto democrático dos eleitores "delegar" a sua missão soberana nas mãos de funcionários internacionais que têm por único dever zelar pelos interesses dos "investidores" que os mandataram? Claro que não pode! Mas além de falsa e humilhante, esta alegação é também um disfarce para a cumplicidade ostensiva que sempre existiu entre este Governo e a troika, uma sintonia bem explícita na célebre proclamação pelo primeiro-ministro da vontade de "ir além do memorando de entendimento". Desta maneira o Governo não conquista o Paraíso mas consegue adiar a condenação ao Inferno e obter refúgio temporário no Limbo, um lugar "para além dos limites do Céu" que, segundo alguma teologia cristã, é o destino das almas dos inocentes que morreram sem batismo e onde "vivem" apartadas da "presença beatífica" de Deus mas, em todo o caso, isentas de censura, penas ou tormentos. Passando da metafísica para a criminologia, trata-se de um estado de "inimputabilidade" que a ciência jurídica moderna reconheceu aos loucos e aos incapazes: por mais hedionda que seja a ofensa, não há crime nem punição. Restam apenas "medidas de segurança" para a prevenção de danos eventuais.
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Como se verificou pelas novas medidas de austeridade anunciadas na véspera do 1.º de Maio, precisamente ao contrário do que fora recentemente prometido, o Governo veio garantir, por muitos e tristes anos, mais cortes nos salários e pensões e mais aumentos dos impostos. Ou seja, o limbo governativo a que estamos condenados não serve apenas de desculpa para a imposição de todos os sacrifícios. Embora até a hierarquia da Igreja Católica tenha já banido tal lugar, persiste o "limbo do Governo" que continua a habilitar os governantes a reincidir em todas as mentiras e trapaças, sempre que lhes convenha ou lhes pareça mais seguro ou mais conveniente. E não é apenas o Governo, enquanto unidade colegial, que se presume isento de pecado ou contradição. Cada um dos seus ministros, secretários de Estado, assessor ou porta-voz parlamentar, deste ou daquele lado da coligação, conforme a hora e a circunstância, ao sabor dos seus caprichos e emergências, pode enfaticamente negar ou prometer o que muito bem lhe aprouver, independentemente do que o próprio ou qualquer outro colega tenha alguma vez declarado ou venha hipoteticamente a declarar!
Não há memória de um Governo tão mau e incompetente desde o fim da ditadura. Sim, em 40 anos de democracia, incluindo todos os governos anteriores e posteriores à aprovação da Constituição, definitivos e provisórios, saídos de vitórias eleitorais ou de iniciativa presidencial, por mais patéticos e precários que tenham sido! É certo que esta situação só se tornou possível graças à gradual degenerescência do nosso original regime semipresidencialista. De outra forma, este Governo teria caído, o mais tardar, no verão do ano passado. Como se explica que a figura tutelar do Presidente da República tenha persistido, com este recorte constitucional, muito depois de se ter esgotado a sua utilidade histórica? Só uma cultura adversa do pluralismo político, desconfiada do confronto leal e aberto de ideias e propostas - herança secular do Santo Ofício e do salazarismo - justifica a sobrevivência de um paternalismo constitucional a cuja sombra cresceu a infantilização dos partidos, a desresponsabilização do Governo e a submissão do Parlamento, o desprezo pela prestação de contas e pela responsabilização dos eleitos perante os seus eleitores, em benefício da hegemonia dos aparelhos partidários e da opacidade dos interesses que os parasitam. Refletia aqui, na semana passada, sobre a urgência da reforma do sistema político e eleitoral, caminho incontornável para a credibilização dos partidos e para superar uma crise da representação que hoje ameaça a própria democracia. É matéria que reclama a assunção tempestiva de compromissos políticos claros e corajosos.