A política é, a 14 de junho de 2019, o produto mais tóxico do Brasil. A memória ainda fresca do descontrolo da Esquerda, a evidência sempre pasmante da Direita em exercício, encurralam os brasileiros num confronto que apenas sobe de tom.
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Imaginem a paixão pelo futebol, o quanto ela propende para uma filiação irracional, uma certa profissão de fé. Imaginem se milhares ou milhões de pessoas perdessem o emprego caso o Benfica fosse campeão, e outras tantas vissem os seus salários desvalorizar, diminuir ou congelar. Imaginem que por ganhar o Benfica as mulheres passavam a ser vistas como animais inferiores, e os homossexuais fossem agredidos e insultados ou os negros chamados de gado. Pensem no irracional das paixões do futebol e ponderem como seria impraticável a sociedade se com elas fundamentássemos o voto e administrássemos o nosso Governo. Os benfiquistas campeões mandando barbaridades, os demais recusando obediência, ofendidos em sua própria fé.
O Brasil é uma ferida exposta assim. Não há cicatriz. Cada gesto é um golpe mais fundo, um golpe em outro lugar, que traz a carne à rua. O mais macabro da situação leva a que uns e outros sejam impelidos para serem agentes de predação. Intoxicados pela política que desmorona, os cidadãos comuns antagonizam quem podem antagonizar: os seus pares. Desde o ano 2000 que não via o Brasil tão triste.
Dia 14 de junho, greve geral, saio do Rio de Janeiro onde as manifestações são inexpressivas. Explicam-me que os cariocas, letárgicos já desde as Olimpíadas, se sentem longe do poder, adiantaria pouco correrem o risco de serem violentados. Depois das eleições, aqueles que não são pelo Benfica, mesmo que não sejam particularmente adeptos de futebol algum, evitam a pronúncia. Multiplicam-se os casos de ameaça, as armas mostradas ou imitadas, a intimidação descarada. No Rio dizem-me que esta é uma greve paulistana e haverá de ter um pouco mais de gente em Brasília, não tanta quanto seria normal, porque a retaliação deixou de ser normal.
Chego a São Paulo ao início da tarde. A cidade brava onde talvez a opacidade da selva de betão permita que vozes assumam ainda a discórdia. As estradas limpas, escassos automóveis. Aquela aproximação maravilhosamente imperfeita do inverno, debaixo de um sol intenso, calor. A cidade parou. Nas manifestações, não tão cheias, há confrontos. A Polícia intimida quem não faz sequer confusão. A ideia é a mesma que todos discutem: impedir que a Oposição se manifeste. Incutir o medo de opinar.
Na Avenida Paulista um mendigo carrega dois paus pregados em forma de cruz. É um Cristo contemporâneo. Assiste impávido. Diz-me que se curou de todos os problemas da sociedade. Diz: a maioria não é fascista. Ganharam porque votaram os fascistas e os que odiavam o Governo. E ganharam porque muita gente não faz nada. Como eu. São indigentes. Mas eu assumo. Carrego minha cruz pelas ruas fedendo igual cachorro.
*ESCRITOR