Seria bom que a Covid-19 revelasse o melhor de nós. Nem sempre é assim a nível individual e no plano internacional.
Corpo do artigo
Em todas as guerras, acumulam-se batalhas que se vão travando na sombra sem delas nunca existir uma versão real daquilo que acontece. Esta pandemia já tem muito para contar a esse respeito...
Esta semana, a revista "L"Express" escolheu como tema de capa "as guerras secretas do coronavírus". Num extenso dossiê, os jornalistas vão enumerando as contrafações orquestradas em diversos produtos (medicamentos, ventiladores...); os subornos urdidos nos aeroportos chineses para que as mercadorias sejam desviadas para certas rotas; as compras obscuras de máscaras; as máfias que se multiplicam em transações especulativas...
Os negócios em torno dos equipamentos médicos e de proteção individual atingem dimensões inimagináveis. Desenvolvidas na penumbra, essas operações vão beneficiando de uma urgência sanitária que, para salvar vidas, vai pagando quantias exorbitantes por materiais até há pouco tempo comprados por muitíssimo menos dinheiro. A entrada dos EUA no circuito de compras à China veio piorar uma situação já insustentável. Hoje, a exportação de equipamento médico integra-se, por vezes, num complexo jogo geopolítico multilateral pouco transparente. Muitas vezes, é preciso adiantar pagamentos sem conhecer fabricantes, sem ter acesso a certificados de garantia e sem mesmo saber se esses produtores existem... Em Israel, o Ministério da Defesa trabalha em parceria com o Ministério da Saúde, acionando com frequência os serviços secretos para perceber certas movimentações comerciais. Também os EUA colocaram aviões da Força Aérea para carregarem material em solo asiático. Há, na verdade, várias guerras no terreno.
A revista francesa também destaca um outro campo de batalha: o que ganha forma nos laboratórios onde a investigação de ponta avança. Ainda há pouco tempo, os EUA movimentaram-se para controlar a startup alemã CureVac que está a trabalhar na criação de uma vacina de ataque a esta pandemia. Angela Merkel tomou de imediato uma posição de força e a Comissão Europeia ergueu barreiras através da entrega de 80 milhões de euros para conservar esta unidade em solo europeu.
Repete-se o clássico dilema dos tempos de guerra, que coloca as nações perante o dever de salvar os seus a qualquer custo, fechando os olhos a práticas menos escrupulosas. Mas a pergunta impõe-se: no século XXI, da Internet, da regulação e das Nações Unidas, não teria sido possível uma ação global concertada, menos egoísta e mais eficaz? Sim, mas o Mundo não se preparou. A partir de agora, já ninguém desconhece o trabalho de casa.
Prof. Associada com Agregação da U.Minho