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A apresentação do guião da reforma do Estado, protagonizada esta semana pelo vice-primeiro-ministro, foi um momento insólito da história da democracia portuguesa. Insólito pelo momento, pela forma e pelo conteúdo. Um hino à contradição.
O momento. A ideia de refundar o Estado foi primeiro lançada por Passos Coelho em outubro de 2012, durante as jornadas parlamentares conjuntas do PSD e do CDS. Já em fevereiro de 2013, o primeiro-ministro encomenda o guião da reforma a Paulo Portas, para apresentação muito próxima. Em Junho, dá nota de um "draft" que seria público em muito pouco tempo, mas que afinal viria depois do verão. Por fim, mesmo no final de outubro, em pleno debate do Orçamento de Estado para 2014, Portas apresenta o documento. Este formato de novela liquidou qualquer possibilidade de uma discussão séria e colaborativa. O contexto sobrepôs-se ao texto.
A forma. Um documento da reforma do Estado é suposto ser completo, fundamentado e consensual entre aqueles que o propõem. Ora, aquilo que foi apresentado mais parece uma redação escrita em letra grande e espaçada, fazendo recordar o estudante que, à falta de tempo e conteúdo, procurou um subterfúgio para cumprir o número mínimo de páginas que o professor exigia. Quando se reforma, seja um Estado, uma empresa ou uma qualquer associação recreativa, é imperioso explicitar o antes e o depois de cada medida. Isto é, o quadro detalhado que justifica a mudança, o respetivo resultado esperado, devidamente quantificado, e a calendarização. Nada disso está no guião. Quanto ao consenso, sabe-se que dentro do PSD e do próprio governo o documento não alimenta paixões. Os ministros, chamados a contribuir para a sua melhoria final, não se envolveram e há barões do partido, como Morais Sarmento e Manuela Ferreira Leite, que desqualificam o exercício ao ponto de a ele se referirem como "um papel" sem novidades.
Custa-me a perceber que não seja o primeiro-ministro, em pessoa, a apresentar o plano de todos os planos, aquele que reforma o Estado. E que os deputados do PSD, incluindo o seu líder parlamentar, não tenham tido conhecimento prévio do documento, o que fez com que se remetessem ao silêncio após a apresentação de Portas. Ao invés dos parlamentares do CDS, que se mostraram muito informados e convictos na defesa do mesmo. Não restam dúvidas de que continua a existir uma forte clivagem dentro do executivo, o que me leva a questionar sobre quem manda, hoje, no governo.
Por fim, o conteúdo. A opção natural seria partir das funções e da estrutura do Estado consagradas na Constituição da República. Assim não o entendeu Paulo Portas, o que ficou bem claro durante a apresentação do documento. O vice-primeiro-ministro optou por debitar uma constelação de lugares-comuns, uma espécie de benesses que as pessoas gostam de ouvir, como a reforma das secretarias gerais dos ministérios e o corte nos chamados consumos intermédios. A determinada altura, aproximou-se daquilo que interessa. Na educação, lançou a barbaridade da entrega de escolas a sociedades de professores, o limite extremo da privatização do ensino. Na segurança social, referiu-se às pensões como créditos adquiridos e direitos em formação, justamente o conceito que o seu governo renega e não aplica. Na saúde, afirmou que os recursos devem estar disponíveis no tempo e no lugar, de forma equitativa, precisamente o contrário do que tem feito.
Finalizou com a convicção de que o sentido útil da reforma do Estado é a redução da carga fiscal e da burocracia. O que está nos antípodas da sua governação. Não seria problema, se o primeiro-ministro não tivesse já afirmado que a reforma do Estado está a ser feita há dois anos!
Neste quadro, o apelo reiterado ao envolvimento do Partido Socialista só poderia ter de volta um rotundo não. Basicamente, o governo cortou em tudo, aprovou os orçamentos da austeridade dos três primeiros anos da legislatura e agora, a pensar nas legislativas de 2015, atira com um documento cor de rosa, uma espécie de panfleto eleitoral, ainda por cima pouco consensual entre as suas hostes, mais a pensar no seu futuro do que no futuro do país. Uma oposição séria só poderia recusar jogar este jogo.