O Istituto Storico della Resistenza e dell"Età Contemporânea do Forlì-Cesena, de Bolonha, propõe-nos, por estes dias, uma mostra documental dedicada a Anne Frank. Retrata a sua história e considera-a "una storia attuale". Uma história atual... Talvez valha a pena pensar nas muitas Anne Frank que hoje sobrevivem escondidas na Ucrânia ou em orfanatos e campos de reeducação na Rússia.
Corpo do artigo
A deportação de crianças é criminosa em face da lei e da Convenção dos Direitos da Criança, mas nem por isso as crianças ucranianas estão a salvo da deportação levada a efeito pelas tropas russas. O Tribunal Penal Internacional afirma que estão identificadas centenas de crianças deportadas para a Rússia, aliás, fala em "pelo menos" centenas de crianças levadas, contra sua vontade, de orfanatos e outras instituições infantis ucranianas. Ou seja: os números podem ser maiores.
Há organizações humanitárias que têm indicado números maiores, falando em mais de seis mil menores de idade levados da Ucrânia para campos de reeducação e orfanatos russos, bem como para famílias da confiança do Kremlin que as estão a adotar. Mais de seis mil. Ou até muitas mais. O Laboratório de Pesquisa Humanitária de Yale é um dos que aponta para mais de seis mil crianças raptadas dos territórios ocupados após a invasão da Ucrânia pela Rússia. A organização Human Rights Watch aponta elementos da mesma ordem de grandeza.
Todos compreendemos que a deportação de crianças é criminosa. Sentimos o sofrimento das famílias que perdem os filhos, os netos, os sobrinhos... Imaginamos a angústia das crianças colocadas, à força, em famílias ou em orfanatos de um país a que não os ligam quaisquer laços afetivos. Tememos pelos abusos a que podem ser sujeitas, assim como nos indignamos com a violência da reeducação e o treino militar impróprio para crianças.
Assim, não nos surpreende que o Tribunal Penal Internacional tenha emitido um mandado de detenção contra o Presidente da Rússia Vladimir Putin por o considerar responsável pelo crime de guerra de deportação ilegal de crianças, agravado pela adoção dessas crianças por famílias russas, o que indicia a intenção da Rússia de retirar definitivamente essas crianças às famílias e instituições da Ucrânia. É um ato ilegal, uma imoralidade, uma negação da IV Convenção de Genebra (de 12 de agosto de 1949, relativa à proteção de civis em tempo de guerra).
A Ucrânia rejubila com o mandado de captura, o que se compreende, mas, infelizmente, não se adivinha, a curto prazo, qualquer resultado da decisão do Tribunal. A Rússia diz que é um ultraje. Seria um caso para rir se não fosse uma tragédia. Aliás, esta é, lamentavelmente, uma constante da Rússia nesta guerra na Ucrânia.
Depois de mais de um ano de ataques bárbaros, de massacres, de violações, de agressões diversas, de deportação de crianças, considera o mandado do Tribunal um ultraje. Como se a maior afronta não tivesse já sido cometida pela Rússia quando invadiu uma nação soberana, na Europa dita civilizada, em pleno século XXI.
Aliás, Moscovo vai mais longe ao não reconhecer o poder do Tribunal Penal Internacional. Na verdade, como o cinismo governa o mundo, provavelmente, Vladimir Putin até tem razão e o Tribunal, apesar de ter emitido o mandado de detenção, para já, não poderá fazer muito mais e obterá um resultado nulo. Basta a Putin escolher criteriosamente os países para onde viaja, não correndo o risco de entrar em países que reconhecem este Tribunal. Se o fizer, não lhe acontecerá nada.
A emissão do mandado de detenção é uma decisão que é histórica, de facto, como sublinha o Presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky, mas é uma mão cheia de nada. A guerra, a destruição, a morte, a sobrevivência em condições desumanas e o rapto de crianças prosseguem indiferentes a tribunais e histórias como as de Anne Frank continuam a acontecer todos os dias nos esconderijos da Ucrânia e nos orfanatos e campos de reeducação da Rússia. É mesmo uma história atual.
* Historiadora (HTC - CFE - Nova FCSH)