Habitação e o direito sem deveres
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Nas últimas eleições europeias, houve um debate controverso sobre a hipótese de inscrever a habitação na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia. A proposta era marcadamente conjuntural - logo, muito longe de constituir qualquer direito fundamental - e demagógica, uma vez que não teria qualquer efeito prático na política de habitação dos estados-membros e daria apenas a aparência de se estar a resolver um problema. A ideia, no entanto, ganha raízes e simpatias, criando legítimas expectativas na população de que ter casa própria é um direito social inalienável, ao qual o Estado tem o dever de corresponder.
Esta semana, o ímpeto social-populista sobre esta matéria teve um novo episódio, na sequência dos tumultos na Grande Lisboa e das declarações do presidente da Câmara de Loures. Se o autarca reagiu a quente, sem grande ponderação e extravasando as suas competências legais, aqueles que têm vindo a argumentar em sentido contrário não têm prestado um melhor serviço à sociedade e não estão a contribuir para um debate responsável sobre a intervenção social do Estado neste domínio.
Qualquer inquilino particular sabe que o seu contrato de arrendamento pressupõe direitos e obrigações. Nestas últimas, cabem vários comportamentos genericamente associados a pagamentos de renda, zelo sobre a propriedade e respeito pela convivência social. Caso estas regras não sejam cumpridas, o arrendatário também sabe que o despejo é uma possibilidade.
Ao invocar leis fundamentais como argumento para o “não despejo” em habitações sociais, o que insignes juristas, representantes políticos e outros comentadores estão a dizer à comunidade é que existem tratamentos diferentes, consoante se trate de contratos de arrendamento públicos ou particulares. E que, no caso dos primeiros, os direitos não têm equivalência nas obrigações, podendo as pessoas que estão a usufruir de residências pagas pelos contribuintes fazer o que bem lhes apetece, sem que nada aconteça.
Além de distorcida e legalmente controversa, esta visão enferma de uma perigosa desresponsabilização social. Na urgência de descolar do extremismo, os partidos centrais do regime esquecem o óbvio e não medem as consequências do que dizem.