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Agora que a saga do Harry Potter vai ser adaptada a série pela HBO Max, há que ter uma conversa muito séria. Sabes perfeitamente que falo contigo: tu, meu amigo, minha amiga, tu, que ainda não largaste as coisas da infância. E eu sei a quem me dirijo: tu, que todos os natais revês os filmes de enfiada, tu, que relês os livros de assentada uma vez por ano - mais do que fã, muito pior do que leitor - é contigo que falo, ó fiel do credo rowliano.
Estás a caminho dos quarenta anos e tens saudades de ti mesmo, de teres crescido com aquele habitante de vão de escada que um dia, como gostarias que tivesse acontecido contigo, foi arrancado da angústia por um efeito mágico. Confessa que ainda esperas uma carta num bico de coruja. Estás quase a meio da vida e levas pela mão uma espécie de Peter Pan que se chama Harry Potter. Mas, bem vistas as coisas, é a ti próprio que levas pela mão feito criança. Talvez isto pareça confuso, como parecem confusas as religiões aos que não acreditam nelas.
Mas tu ainda acreditas no Harry Potter - tu ainda te reges pelos padrões morais que os livros ditam. E sabes perfeitamente quem é quem. Que aquele metediço snob que no outro dia te chateou no trabalho é certamente Slytherin e às tantas está feito com o director de vendas; que a tua melhor amiga, um pouco sensaborona mas sempre presente, é uma perfeita Hufflepuff; que o colega de olhar distante e frases certeiras, que passa o dia a tomar notas bem-comportadas, só pode ser Ravenclaw; e que tu, nesse quotidiano de moer em que te apercebeste, não sabes quando, que és velho para os novos e novo para os velhos, não tens qualquer dúvida - diga o que disser o Chapéu Seleccionador - de que és o mais perfeito exemplo de Gryffindor.
Nos momentos tensos, nas dúvidas morais, imaginas-te a percorrer os corredores de Hogwarts, a subir as escadas de pedra para o escritório do director, e vês-te tímido, respeitador mas sedento de conselhos, a perguntar ao Dumbledore o que faria. E este responde-te calmamente: "São as nossas escolhas, Harry, que mostram aquilo que realmente somos, muito mais do que as nossas qualidades."
E agora, confessa, estás dividido entre o entusiasmo de voltar às coisas felizes que o anúncio da nova série despertou em ti e a quase certeza de que te desiludirás, porque o cânone é sagrado, ninguém deve mexer nos evangelhos e o que aí vem soa a apócrifo.
Nada te perturbe, nada te espante, tudo passa, o Harry Potter não muda, a paciência tudo alcança (se fosses de outro credo, perceberias a paráfrase) e lembra-te de que nem a própria J.K. Rowling é capaz de te fazer vacilar na fé.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia