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1 Este era para ser um texto sobre os hipócritas e o Banif. Mas uma morte sem sentido sobrepôs-se e, por enquanto, será sobre Hipócrates e os médicos. Mas antes ainda de chegar ao famoso juramento, há um mínimo de enquadramento a fazer. David, 29 anos, chegou ao Hospital de S. José, a uma sexta--feira, com uma rutura de um aneurisma. Só se poderia salvar se fosse rapidamente operado por um neurocirurgião. Não havia nenhum ao fim de semana. Pelos vistos não lhes pagam o suficiente. David morreu na segunda-feira seguinte. Os médicos que o atenderam sabiam que não fazer nada equivalia a uma sentença de morte. E de duas uma: ou ficaram de braços cruzados, sem chamar quem o podia salvar; ou chamaram quem o podia salvar e esse alguém se recusou, preferindo ficar de braços cruzados. Foi por isso que fui ver o que diz o juramento de Hipócrates, que todos os médicos estão obrigados a fazer. É demasiado extenso para aqui o reproduzir na íntegra, pelo que deixo apenas duas passagens: "Prometo solenemente consagrar a minha vida ao serviço da Humanidade (...) A saúde do meu doente será a minha primeira preocupação". São raras as vezes em que fica tão claro que, para alguns - demasiados, ainda que poucos -, o juramento não passa de uma anacrónica peça de teatro grego. E talvez isso explique porque há tanta gente, médicos incluídos, que confunde a origem do nome Hipócrates com a raiz etimológica do termo hipócrita.
2 "Observando a Zona Euro, verificamos que a governação ideológica pode durar algum tempo, faz os seus estragos na economia, deixa faturas por pagar, mas acaba sempre por ser derrotada pela realidade". Ao ler a frase, descontextualizada, cheguei a pensar que o presidente da República tinha sido acometido de uma epifania suscitada pelo escândalo do Banif. Que, por uma vez, poderia reivindicar o papel de provedor do povo português e impedir que os nossos impostos sirvam para colar os cacos provocados pela especulação financeira. No fundo, que Cavaco Silva, armado com a mesma carapaça ética de Hipócrates, combatesse a "governação ideológica" vigente na Zona Euro, a que impõe a privatização dos lucros e a socialização dos prejuízos, provocando "estragos na economia". Eventualmente até defender que as "faturas por pagar" o fossem por quem fez a despesa. Foi sol de pouca dura. Afinal Cavaco Silva estava a puxar as orelhas à Esquerda e a apelar ao pragmatismo. Ou seja, ao habitual paga e não bufes, uma vez que o que é importante é assegurar a estabilidade do sistema financeiro. Nesta história interminável de bancos falidos, não vale a pena ter ilusões, não se vislumbra nenhum Hipócrates, apenas hipócritas.
, EDITOR EXECUTIVO