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Não é de espantar uma certa comoção nacional em torno da ida do presidente da República ao Catar, para assistir a um jogo da seleção nacional de futebol. Sobretudo porque Portugal não é exceção na imensa nuvem de adormecimento em que, durante dez anos, estiveram estacionadas as consciências coletivas. O Ocidente parece ter acordado só agora para as dificuldades daquela monarquia absoluta em lidar com a liberdade de expressão, os direitos laborais, a emancipação das mulheres e a simples existência de homossexuais. Boicotar a ida do presidente da República ao Catar por razões políticas é, por isso, de uma enorme hipocrisia, ainda que a ligeireza inicial das suas declarações, numa flash interview à la treinador de futebol, em que sugeria de algum modo a prevalência da dimensão desportiva à dos direitos humanos, possa explicar reações tão vocais. Mas como a memória é curta, convém lembrar que ninguém se exaltou quando, no Mundial de 2018, o mesmo presidente esteve reunido com Vladimir Putin na Rússia. Não consta que Moscovo também morra de amores pela liberdade de expressão e pelos direitos dos homossexuais.
O que verdadeiramente me espanta é que esta indignação intempestiva não esteja centrada na necessidade de, mais uma vez, mandarmos as mais altas figuras do Estado a um país distante ver um jogo da bola. Seja no Catar, seja na Rússia, seja onde for, qual é exatamente o propósito de continuarmos a ter os mais distintos embaixadores da República em eventos desta natureza? Numa prova desportiva, são os atletas que representam o país, não os políticos. A Marcelo, Costa e Santos Silva bastava desejarem boa sorte aos jogadores antes da partida. E ficar deste lado, como nós, a torcer pelo seu desempenho. Acresce que, no caso em apreço, havia razões de sobra para terem trocado o cadeirão do estádio pelo cadeirão da sala de estar. Mas a bola inebria. E contagia.
*Diretor-adjunto