Corpo do artigo
As mentiras são como as nódoas: fáceis de fazer mas difíceis de tirar. Limpá-las requer muito esforço, muito tira-nódoas, muitas raspagens - e nunca nos livramos verdadeiramente delas, se formos a ver.
É que a mentira, sobretudo no espaço público, assemelha-se à persuasão de uma história bem contada. É um fim em si mesma, quer ser eficaz e satisfazer quem a dá e quem a recebe. É como o sexo, quando o sexo não é amor.
E isto cai em cheio na época de dopamina digital, em que buscamos a toda a hora o estímulo e a recompensa. Nada estimula mais a opinião pública do que uma mentira, nada nos recompensa mais do que acreditarmos nela. Satisfaz-nos sermos enganados, tanto mais que a busca pela verdade não dá satisfação no sentido dopamínico do termo: a verdade dá trabalho, requer esforço, estudo, pensamento crítico, aproximação às coisas complexas da vida.
Tornou-se célebre a frase de Churchill sobre a mentira, que esta chega ao outro lado do Mundo antes de a verdade ter tempo de vestir as calças. Por cá, o Polígrafo é um óptimo exemplo do bem-pôr-as-calças, do bem-verdadar, mas reparem que apresenta explicações longas e enfadonhas que não satisfazem ninguém, sobretudo os que se comprometeram com a mentira que o Polígrafo desarmadilha.
O fact-checking tem um grande problema: os factos. Ou os apresenta como dados adquiridos sem contexto, e nesse caso assemelha-se muito à mentira, ou perde-se em explicações sinceras mas ineficazes. Compreendê-las requer tempo, conhecimento histórico, percepção das nuances e até sensibilidade para motivações mais psicológicas do que racionais.
A mentira, pelo contrário, está muito bem contida dentro de si mesma e cativa-nos em poucos segundos. Talvez esse seja o maior feito da ficção, a suspensão da descrença (estamos fartos de falar disso em literatura) e a confiança na fé. Vivemos muito pela crença, apesar de perdermos a fé.
Todas as épocas foram perfeitas para a mentira, mas umas foram mais perfeitas do que outras - e a nossa é a melhor de todas. Os populismos, as grandes máquinas de mentir, têm à sua mercê, como nunca, meios de disseminação, além de nos apanharem desejosos, prontos a sermos enganados.
Ao contrário do que diz o povo, a mentira nunca teve perna curta. Tem-na muito longa, dá a volta ao Mundo com rapidez. Por exemplo, uma mentira chegou ao fim desta crónica sem contraditório meu ou de quem a lê.
A frase de Churchill sobre o alcance da mentira e as calças da verdade não é de Churchill. Não se sabe quem a disse, talvez ele ou Jonathan Swift ou Mark Twain. Mas não importa: se non è vero, è ben trovato. Só isso interessa: movermo-nos momentânea e digitalmente por uma história bem mentida.
O autor escreve segundo a antiga ortografia