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Sábado, ao fim da tarde, os jardins do Palácio de São Bento, junto à residência oficial do primeiro-ministro, foram o lugar escolhido por António Costa para prestar homenagem a Mário Soares, chefe do I Governo Constitucional solenemente empossado há, precisamente, 40 anos - no dia 23 de julho de 1976. Foi o primeiro Governo da II República nomeado conforme a Constituição saída da Revolução Democrática de 25 de Abril de 1974 que pôs termo à ditadura fascista e à guerra colonial. Homenagem justa e oportuna que contou com a presença do principal fundador do regime político que nos devolveu a dignidade como Estado soberano empenhado na construção de relações de paz e cooperação com todos os povos, na proteção das nossas liberdades e na garantia dos direitos fundamentais.
A entrada em funções do I Governo Constitucional assinala também o fim do período de transição revolucionária que inspirou e serviu de exemplo a outros povos em vários continentes. As memórias dessa fase de emergência das novas instituições democráticas - o processo revolucionário em curso, que ficaria vulgarmente conhecido pela respetiva sigla (PREC) - refletem, naturalmente, a diversidade das opções políticas e ideológicas professadas por múltiplos intervenientes, pelos conflitos em que se acharam envolvidos, pelos êxitos e insucessos experimentados em distintos momentos da revolução. É por isso surpreendente que, apesar de tudo, tenha sido possível estabelecer uma colaboração fecunda entre militares e civis, partidos, organizações populares e movimentos espontâneos de cidadãos. Que a Assembleia Constituinte - onde estavam representadas todas as forças e correntes que se digladiavam nas ruas, nos quartéis, nas fábricas e nos campos - tenha conseguido em alguns meses conciliar posições e construir entendimentos para consolidar um modelo de governação e garantir um generoso elenco de direitos cuja aprovação reclamava o consenso de uma maioria qualificada de dois terços de todos os deputados constituintes.
Autor e herdeiro de um tão ambicioso programa constitucional, coube também a Mário Soares, ao longo destes últimos 40 anos, a missão de curador da República, para que as opções constituintes lavradas na Lei Fundamental perdurassem até hoje nos seus traços essenciais, desde o catálogo dos direitos até à organização do poder político e à defesa do caráter essencialmente parlamentar do nosso singular semipresidencialismo. Uma missão cumprida sem prejuízo da necessária atualização e desenvolvimento dos conteúdos, através de sucessivas revisões constitucionais, da jurisprudência dos tribunais superiores e das orientações de política geral promovidas por governantes e deputados, conforme os resultados de dezenas de atos eleitorais invariavelmente reconhecidos como livres e justos.
Mário Soares foi um resistente indefetível contra a ditadura fascista e colonialista mais duradoura da história europeia. Nos anos do PREC, bateu-se corajosamente pela liberdade, em defesa de uma democracia representativa, aberta, plural e cosmopolita, que garantiu nas eleições do passado mês de outubro que a vontade do povo se pudesse materializar numa solução de governo capaz de oferecer uma alternativa à opção pela subserviência externa e pelo flagelo económico e social professados pela coligação PSD/CDS. E contra o cinismo e a indiferença, o agravamento das desigualdades, as violações do direito internacional, a crise global da representação democrática - sinais ameaçadores destes novos tempos - Mário Soares não desanima e já no prefácio ao seu livro, "Um Mundo inquietante", de 2003, convoca-nos: "É essencial que os partidos socialistas, trabalhistas e sociais-democratas - os que se consideram de Esquerda - herdeiros de uma riquíssima tradição de luta pelas grandes conquistas políticas e sociais do século passado, hoje ameaçadas - compreendam esta situação nova e procedam em conformidade, ocupando o terreno que lhes pertence".
*DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL