Será, talvez, um sinal dos tempos que o Papa Bento XVI tenha decidido escrever um artigo para o "Financial Times" (FT), o principal jornal económico europeu. Não um artigo qualquer, nem numa altura qualquer. À primeira vista, o pretexto terá sido o novo livro sobre a infância de Jesus. Sem nunca lhe fazer referência, os primeiros parágrafos do texto podem, na verdade, ser lidos como uma reescrita de algumas das ideias fortes de "Jesus da Nazaré - A Infância de Jesus" (editado, entre nós, pela Principia). Um editorial do jornal, em que se faz uma interpretação detalhada do que o Papa escreveu no livro mas, curiosamente, não no artigo, faz-nos crer que poderá ter havido um convite nesse sentido. A apresentação do autor como escritor do livro referido concorre, também, nesse sentido. Quaisquer que tenham sido as razões, percebe-se que Joseph Ratzinger quis aproveitar a oportunidade para passar uma mensagem mais deste tempo, como o próprio título sugere: "Um tempo para os cristãos se comprometerem com o mundo". Uma mensagem que, vai-se a ler, é um apelo a todos os homens de boa vontade. "Tipicamente natalício", estarão a pensar. Não deixando de o ser, vai mais além. O pretexto é, certo, o nascimento de Jesus. Um pretexto que Bento XVI usa com mestria para, sublinhando alguns princípios fundamentais da fé cristã, evidenciar as pontes que se podem estabelecer com todos aqueles que partilham os lemas de vida que os cristãos deles retiram. "O nascimento de Cristo desafia-nos a reavaliar as nossas prioridades, os nossos valores, a nossa própria maneira de viver. Se o Natal é um tempo de alegria é, também, uma ocasião para uma reflexão profunda, mesmo um exame de consciência. No fim de um ano que significou grandes privações económicas para muitos, o que se pode aprender da humildade, pobreza, simplicidade da cena da natividade? (...) Os cristãos não devem negar o mundo; devem comprometer-se com ele. Mas o seu empenhamento na política e na economia deve transcender toda a forma de ideologia".
Corpo do artigo
Numa tradução livre, e omitindo, por minha iniciativa, quase todas as referências doutrinárias, eis o que o Papa escreve a seguir: "os cristãos combatem a pobreza como reconhecimento da suprema dignidade de cada ser humano criado à imagem de Deus (...). O seu trabalho por uma partilha mais equitativa dos recursos da terra baseia-se na crença de que temos (...) um dever de cuidar dos mais fracos e mais vulneráveis. Os cristãos opõem-se à ganância e à exploração por terem a convicção de que a generosidade e o amor altruísta (...) são o caminho para a plenitude da vida". (...) "Dado que estes objectivos são partilhados por muitos, é possível uma cooperação frutuosa dos cristãos com os outros".
Neste tom, o Papa constrói as bases para a ponte e o desafio que lança no parágrafo final "(Jesus) traz esperança a todos os que, como ele próprio, vivem nas margens da sociedade. Traz esperança a todos os que são vulneráveis às mudanças de um mundo precário. Da manjedoura, Cristo apela a que vivamos como cidadãos deste reino celestial, um reino que todos os homens de boa vontade podem ajudar a construir aqui na terra". Um desafio que os editores do FT parece só em parte terem percebido ou querido perceber. Num texto inusitadamente ligeiro, entretêm-se com aspectos que tiveram impacto mediático (o boi e a vaca, a estrela, os reis magos), sublinham o pragmatismo de Bento XVI que, segundo eles, terá implicitamente reconhecido que "o Natal é maior do que Jesus". Ora, se o tom do artigo é o de um apelo aos Outros, o que poderia legitimar a leitura que fazem, os termos em que o mesmo é lançado são muito concretos. Num mundo cada vez mais mercantilizado, em que da economia de mercado se evoluiu para uma sociedade de mercado, com todas as consequências morais que daí decorrem, os valores que Ratzinger enfatiza estão nos antípodas de tal lógica. Valores que o autorizam a convocar todos os homens de boa vontade para uma cidadania empenhada na construção do reino ideal já aqui na terra, dando novo sentido à frase "Natal é quando o homem quiser".