Hungria - regresso ao passado
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O Fidesz nasceu no final dos anos oitenta do século passado como expressão política da resistência juvenil à ditadura do Partido Comunista da Hungria, ainda nos tempos da clandestinidade. Curiosamente, só em 1993 foi revogada a cláusula estatutária que limitava aos menores de 35 anos a militância no partido! Porém, "cansados" dos modestos resultados eleitorais que não lhes franqueavam as portas do poder, iriam em breve trocar o ideário democrático, cosmopolita e liberal dos tempos da resistência, por um nacionalismo reacionário e populista que, embora tenha afastado muitos dos seus fundadores, acabaria por conduzir o partido à vitória. Com o triunfo esmagador alcançado nas eleições de 2010 que lhe concedeu uma maioria qualificada de dois terços dos deputados eleitos para o Parlamento da Hungria, o primeiro-ministro, Victor Orban, fez aprovar uma nova Constituição que embora tenha entrado em vigor apenas em janeiro de 2012, já conta, até hoje, com quatro revisões constitucionais expeditamente apresentadas, debatidas e aprovadas pelos deputados do Fidesz, coligados com o Partido Popular Democrata Cristão.
Esta exuberância constituinte tem uma explicação prática e elementar: sempre que o Tribunal Constitucional declara uma lei inválida por violação da Lei Fundamental, a maioria governante aprova a transferência do seu conteúdo para o texto constitucional e por essa forma se extingue a invalidade. Se mesmo assim o Tribunal Constitucional se "atreve" a fiscalizar a constitucionalidade das leis de revisão, o Parlamento aprova a restrição das suas competências à fiscalização dos aspetos meramente processuais, impedindo assim o controlo judicial do seu conteúdo. Para que a independência judicial não possa "atrapalhar" a missão dos governantes, chegou a ser antecipada a idade de reforma dos juízes e foi entregue a um "gestor" de nomeação política a competência para distribuir os processos judiciais pelos tribunais que julgar mais conveniente. Para impedir que "os interesses económicos" pudessem prejudicar a propaganda dos partidos da maioria em benefício dos partidos da oposição, a quarta lei de revisão constitucional proibiu o recurso a publicidade paga durante os períodos de campanha eleitoral. Foram também constitucionalmente criminalizados os nómadas e sem-abrigo que se instalem nos "espaços públicos", qualificação que fica dependente do critério das autoridades centrais ou locais. O cristianismo foi proclamado pela nova Lei Fundamental como inspiração fundacional da nacionalidade, a família protegida "como a base da sobrevivência da nação" e a aquisição da nacionalidade regulada segundo critérios "de sangue" que ressuscitam velhas querelas territoriais para inquietação dos seus vizinhos da Eslováquia. A proteção da "dignidade da nação húngara", sem mais especificações, é instituída como um limite à liberdade de expressão.
Esta estratégia de sistemática instrumentalização da Constituição - onde foram acolhidas matérias sem a mínima dignidade constitucional - é complementada pelo constante recurso à aprovação de regulamentações minuciosas sob a forma de leis orgânicas - leis que requerem aprovação por maioria qualificada de dois terços - promovendo a inelutável degradação da função legislativa, o desprezo pelos valores do pluralismo político e da alternância democrática, a violação flagrante do sentido essencial do princípio da separação dos poderes. O Parlamento, pela usurpação progressiva das atribuições próprias dos outros órgãos de soberania, converte-se num poder "tirânico e arbitrário", isento de qualquer controlo. O Conselho da Europa e a Comissão de Veneza encaram a possibilidade de submeter a Hungria a um procedimento de monitorização internacional, até hoje nunca aplicado a um Estado-membro da União Europeia. O Parlamento Europeu, por seu lado, designou o deputado português Rui Tavares como relator de uma proposta de resolução já finalizada. Todos exprimem as mais sérias apreensões pela violação dos Direitos Humanos, da democracia e do Estado de Direito em que incorre o Governo da Hungria.