Todos conhecemos a fatal temeridade de Ícaro. Não obstante as advertências de Dédalo, Ícaro despenha-se no mar depois de pretender voar demasiado alto, demasiado perto do Sol. A hecatombe das finanças do Estado, em 2011, as brechas patrimoniais e reputacionais em bancos, os estragos em outras empresas e instituições trazem-nos a questão do Ícaro e do <i>anti-Ícaro </i>das finanças. Bem sabemos que há uma prévia condição de ética em tudo isso. Há um decálogo de conduta, ou uns dez mandamentos, ou uma consciência do bem e do mal, ou o que quer seja, que deveria estar acima de tudo e de todos, mas pelos vistos não esteve. Porém, mesmo separando o trigo do joio e fazendo as colheitas que ao carácter pertencem, sempre o Ícaro das finanças poderia acontecer.
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O bom gestor ou director financeiro é o oposto do facilitismo, é a antítese de Ícaro. Verifica as condições do voo e evita dar um passo no escuro quando o líder da organização abre as asas e visa horizontes. E quem fala do gestor das finanças, fala da vigilância financeira, do conselho fiscal, do Tribunal de Contas, etc. No presente texto, abordo brevemente casos de organizações sem fins lucrativos. Vou do caso mais pequeno, uma associação, ao caso maior, o Estado. Deixo de fora, pois, o caso das empresas, mas muitas das ilações são-lhes comuns.
As pequenas entidades sem fins lucrativos...
É claro que pequenas associações não podem ter, nem precisam de ter, um gestor financeiro, muito menos a tempo inteiro. Têm, frequentemente, um tesoureiro. Quando me pedem opinião sobre os estatutos destas entidades, sugiro sempre a consagração de regras fundamentais de orçamentação e execução de despesas e receitas, tais como: regra do "não défice corrente"; regra do "não endividamento"; regras "ABC". Subjacente a estas regras está o princípio geral da prudência e do equilíbrio. Poderíamos chamar-lhe princípio anti-Ícaro.
Em cada exercício anual, devem as despesas correntes conter-se no limite das receitas correntes. Consequentemente, a dívida deve ser proibida para fins correntes. E mesmo para financiar investimentos, defendo que isso só seja possível mediante aprovação pela assembleia-geral assente em pareceres escritos: um parecer do tesoureiro, que demonstre a futura sustentabilidade da dívida (juros e capital); um parecer do conselho fiscal, concordante com aquele. É uma espécie de regra de ouro reforçada. A esta, acrescem as três regras ABC da despesa: A) Regra do cabimento orçamental, que cede se houver "auto-financiamento" da iniciativa; B) Regra da pertinência relativamente aos fins estatutários; C) Regra da proporcionalidade relativamente à dimensão da entidade. Percebe-se que há aqui interconexões que julgo salutares.
O Estado e outros entes públicos...
Um governo é um colégio de ministros sectoriais tendencialmente gastadores. Ícaro toca-os a todos. O primeiro-ministro é, por vezes, o maior gastador em horas de eleitoralismo. Os critérios são políticos e de oportunidade. Por isso, tenho defendido, como outros o fazem, a aplicação de independentes "análises custos benefícios" a grandes projectos de despesas ou de regimes públicos.
Compreende-se que a figura do ministro das Finanças não seja a mais simpática aos olhos dos seus pares. Todavia, por lei, a sua assinatura é indispensável em muitos diplomas do Conselho de Ministros. Ele desempenha, de certo modo, o papel do administrador financeiro de um enorme grupo empresarial, com duas diferenças essenciais: a função dele é o que é, não é privada, é da República; as principais receitas são o que são, não são vendas, são impostos.
A chamada "regra de ouro" das finanças públicas não é, afinal, muito diferente da já mencionada para as associações e similares. Mas, contrariamente a estas, devemos retirar do défice público "puro" os efeitos, por exemplo, dos "estabilizadores automáticos" do ciclo, quer os da despesa, quer os da receita. Ao fazê-lo, passamos do défice "puro" para o défice "estrutural". Este é o que conta para a "regra de ouro" no âmbito do Estado, que enuncio como regra do "não défice corrente estrutural". E os eurocratas, como enunciam eles esta regra? Na matemática e na prática, eles parecem ser mais exigentes porque usam o défice total estrutural ainda que o limite seja, para nós, não zero mas sim -0,5% do PIB. Segundo projecções oficiais (DEO), só em 2017 estaremos dentro desta "regra de ouro" de teor europeu. Até lá, a tentação de Ícaro espreita. E depois, também.